segunda-feira, 4 de março de 2013

CONTO "O COLETIVO", DE CLEIBSON FREITAS



Cleibson Freitas nasceu em 1985, no Espírito Santo, residindo sempre na cidade de Cariacica. Filhos de pais humildes, tornou-se um apaixonado e curioso pelo ser humano da vida comum. Graduado em Língua Portuguesa e Literatura de Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Espírito Santo, o escritor inicia sua carreira com a publicação de O óvulo e o ovo: tudo de novo. Nessa obra, Cleibson Freitas talvez comece seu primeiro e verdadeiro encontro com a arte. Como ele mesmo diz: “escrevo para ser livre. Ou melhor, brincar de ser livre, de ter prazer e brincar de ser Deus. Escrevo para me esconder do mundo e anular-me por completo. A literatura também serve para nos escondermos”. Confira, abaixo, o conto “O coletivo”:

O coletivo

Sônia fez um sinal com a mão, o ônibus parou e ela entrou. Na parte inferior do parabrisa do motorista estava escrito “via Expedito Garcia”. Decidiu então seguir pra lá e desembocar numa enorme avenida cheia de bares. Assim poderia beber o tempo que fosse necessário.
Quando saiu de casa, não sabia o lugar em que ia se deixar estar. A grande raiva que o Benedito, seu marido, a fizera passar, não permitia que pensasse com clareza o paradeiro que ia tomar. Apesar disso, apesar da grande mágoa que ia carregando peito afora, a sua consciência lhe dava variadas sugestões: ir embora pra casa da mãe, ir pra casa da irmã, ir à casa do irmão mais velho, ir à casa da sogra ou não ir a lugar nenhum. Ao dar sinal pra que o ônibus parasse, todas essas sugestões foram inúteis. Sônia decidiu no provisório que ia era parar num daqueles botecos da Avenida Expedito Garcia e encher a cara até o dia amanhecer. E depois que boa quantidade de álcool já tivesse sido injetada ao organismo, seria possível até que cantasse no Videokê que os bares daquela avenida possuíam. Pois no fundo, bem lá no fundo, sua alma soprava que cantar espanta qualquer mal. E Sônia conhecia a alegria de cantar. Era boa cantora. 

Dentro do ônibus, antes mesmo de terminar de subir os degraus que davam na roleta do cobrador, ela flexionou o pescoço e pediu:
“Quando chegar na Expedito Garcia, o senhor me avisa, por favor?!”
O cobrador balançou a cabeça num gesto positivo e Sônia, adiando a travessia da roleta, se sentou no banco à frente dele. Assim que suas nádegas tocaram a almofada amarelada de poeira, ela avistou novamente no parabrisa do motorista, só que agora na parte superior, outra informação que dizia: “os bancos dianteiros são reservados a gestantes, idosos e pessoas portadoras de deficiência.” Isso foi interpretado como se, no lugar da informação, tivesse um mosquito pousado ou qualquer outra coisa sem importância. Sônia não estava em dias de ser obediente e, por isso, permaneceu ali mesmo sentada à frente do cobrador.  Enraivecida, só pensava no infortúnio que o Benedito cometera.
O Benedito tinha acabado com sua vida e, ela, que agora se achava uma mulher estúpida, lamentava o enorme zelo que sempre teve pelo marido. Começava a se arrepender do excessivo carinho com que o tratava. E quando se lembrou de que quase todos os dias, de madrugada, era ela quem acordava felicíssima pra aprontar a marmita dele, não conseguiu segurar o choro e soluçou de uma maneira rancorosa, de uma maneira que tinha qualquer coisa de vingativa e que não aceitava passivamente que o marido, homem ingrato, tivesse retribuído à sua imensa ternura com o típico machismo tolo que carrega os homens imbecis.

“Homem é tudo igual mesmo. Cambada de galinha”, pensou ela com o seu dogma de analisar o comportamento masculino...
“Moça, tá tudo bem? A senhora tá passando mal?” – perguntou o cobrador assustado por ter ali uma mulher chorando diante de si.
“Tá tudo bem, tá tudo bem...”
Sônia possuía uma aparência agradável. Os cabelos negros escorregadios até os ombros, lhe davam um aspecto atraente. O rosto jovem, arredondado e com leves marcas de acne, trazia uma singular beleza dentro da naturalidade. E os ombros, os belos ombros, talvez não houvesse outros mais bonitos em toda a terra. Eram uns ombros de beleza única, que só ela, Sônia, conseguia guardar neles exagerada elegância. O Benedito, homem desprovido de sensibilidade pra analisar o corpo da esposa, na certa nunca reparara naqueles ombros. Nunca reparara naqueles ombros e talvez nunca reparara sequer a graciosidade que possuía Sônia. Só o cobrador, figura observadora e ousada, teve o sutil ímpeto de comentá-los:

“Chora não, moça! Com esses ombros bonitos que a senhora tem, é uma pena ficar chorando assim. Chora não!” E teve a delicadeza de ainda acrescentar: “ Eu não tô dando em cima da senhora, tá, moça?! Eu só tô elogiando os ombros da senhora. São muito bonitos!”
“Obrigada”, respondeu Sônia secando as últimas lágrimas. E o cobrador, sem perder a gentileza, perguntou:
“A senhora quer ficar em que altura da Avenida Expedito Garcia?”
“Qualquer lugar tá bom! Só me avise quando chegar lá, por favor!”
“Então, se a senhora quiser, pode saltar no próximo ponto. O próximo ponto é o começo da avenida...”
“O senhor sabe onde tem um bar calmo por aqui?”
“Sim, sei. Salta no ponto próximo do posto de gasolina que a senhora vai encontrar um bar excelente em frente a ele. Lá é calmo e legal. Eu sempre vou pra lá. Hoje mesmo eu vou. Esta é minha última viagem. Vou deixar a escala assim que chegar no terminal e vou direto pra lá!”
“O terminal é longe daqui”?
“Que nada! O terminal fica a dez minutos daqui.”
“Ah! Então, moço, se o senhor não se importar, a gente podia ir juntos? Eu tenho medo de andar sozinha por aqui!”
“Claro, não tem problema! Só que, é como eu falei, primeiro tenho que bater ponto lá no terminal.”
“Se não for incômodo, eu posso acompanhar o senhor até no terminal e de lá iremos juntos pro bar. O senhor se importa?”
“Não, não. Imagina.”

Fora numa noite de julho. Noite fria. Noite em que Sônia e o cobrador iriam principiar um agasalho num balcão de bar e terminar num desses mágicos lugares pertencentes à parede do universo. O que se sabe, foi que ela lhe contou tudo. Contou ao cobrador até sobre a sua atividade profissional e o que se tinha passado entre ela e o Benedito. Que naquela noite, minutos antes de entrar no ônibus desesperada, tinha flagrado o Benedito traindo-a na sua própria cama:
“Eu trabalho tomando conta duma senhora e duas vezes por semana eu durmo na casa dela. Hoje era pra eu dormir, mas fui liberada, porque a senhora foi viajar pra fazer exame em outro Estado. O Benedito não sabia que eu ia voltar pra casa. Quando cheguei, notei que tinha uma bolsa de mulher em cima do sofá e, sem fazer nenhum barulho, fui na ponta dos pés até o quarto e lá tavam os dois: dei de cara com o Benedito transando com uma piranha de cabelo ruivo, sardenta e magricela. Eu fiquei paralisada uns instantes na porta. Não consegui sentir sequer o meu corpo e nenhuma palavra saiu de mim, por isso nem escândalos fiz. Eles não me viram. Tudo que eu pensava na hora era matar os dois, me matar ou sumir por aí. Mantive a calma e saí mansinha, da mesma forma que cheguei, sem fazer barulho. Dei sinal ao primeiro ônibus que apareceu e entrei. Era o ônibus do senhor. Não sei agora o que eu faço. Só sei que vou me separar do Benedito, mas não sei se vou morar na casa da minha mãe em Ecoporanga, não sei se vou pra São Paulo pra casa da minha irmã... ”
Depois de uma hora e meia de desabafo, Sônia achou o exato lugar onde precisava estar naquela noite fria do mês de julho: um motel na BR 262, no outro lado da Avenida Expedito Garcia. Ela e o cobrador se agasalharam dignamente um no corpo do outro.



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