Luís Eustáquio Soares nasceu em Rio Pomba, Minas Gerais. Atualmente mora em Vitória, Espírito Santo, onde é professor adjunto de Teoria da Literatura, na Universidade Federal do Espírito Santo. Tem vários livros publicados, tais como “Paradoxias”, romance, 1999; “Cor vadia”, poesia, 2002; “Silvo de Luis Caixeiro”, biografema, 2003, co-autoria com o poeta mineiro Wilmar Silva, “José Lezama Lima: anacronia, lepra, barroco e utopia”, editora Edufes, 2007; “O evangelho segundo Satanás”, romance, 2011. Confira, abaixo, a entrevista com o escritor:
1 – Olá, Luis. Primeiramente, como surgiram as artes em sua vida? Sua paixão foi diretamente pela escrita ou outros meios artísticos também o influenciaram?
Resposta: Se arte é artifício – e, por consequência, desnatureza -, realiza dois movimentos simultâneos: artificializa toda e qualquer forma de natureza e, ao fazê-lo, produz o artifício de um artefato não natural.
E o que é a natureza? Para que não andemos em círculo, dizendo que a natureza é o que o artifício não é; natureza é uma forma religiosamente fixada; uma unidade discursiva, uma instituição, um a priori; algo que é dado, enfeixado, esquadrinhado, não produzido, transcendental, dividido, separado.
Essa compreensão da natureza, como algo redundantemente natural tem a ver com o que filósofo francês Jacques Derrida chamou de metafísica da presença a si de algo ou alguém, como se esse algo ou alguém dissesse por si, pela sua presença isolada, reificada, como uma unidade, uma totalidade, uma subjetividade.
No fundo e no raso não existe a natureza, pois nem a natureza é natural. Tudo é produzido artificialmente através de conexões, devires, multiplicidades de arranjos, de afetos, de conceptos, de perceptos.
Tudo é arte: artifício.
O fato de vivermos como se a família, o saber, o cotidiano, as instituições de modo geral ou a própria natureza, entendida como espaço extra-humano; o fato enfim de habitarmos o mundo como natural constitui uma questão de poder, que é antes de tudo um poder sobre o artifício, que produz o artifício como se este fosse natural.
Se concebemos a arte como se esta fosse naturalmente arte - a arte poética, ficcional, pictural, cinematográfica, musical – é porque, como fazemos com tudo, tal arte se tornou segunda natureza (ou segundo a natureza); não é arte como artifício, mas arte como esquadrinhamento da arte, como instituição, como gênero, como unidade discursiva, separação, divisão, com sua, por si mesma, unidade discursiva naturalizada, como a unidade discursiva da narrativa de ficção, do poema, do conto, da crônica, para ficar no plano do enquadramento, ao qual damos naturalmente (religiosamente) o nome de literatura.
Se a pergunta que me fazem é sobre a arte como natureza artística, então não tenho o que responder, porque esta arte só me interessa, se, com artifícios, puder desconstruí-la, desmontá-la, artificializá-la, flagrando nela a sua dimensão de artefato, de construção estratégica de fixidez de poder disciplinar, epistêmico, estético.
Tal arte, a arte naturalmente arte, dividida em gêneros - fixos ou híbridos, não importa – não é arte, mas poder sobre o artifício da e na arte, poder fixado com a simples definição de que isso é arte, porque é cânone, porque é transcendental imanência complexa de um gênero, o romance, por si mesmo naturalizado, como gênero narrativo.
Tal compreensão de arte, ligada a um olhar eurocêntrico, está naturalmente implicada com a religião da alta cultura, do alto valor da arte; compreensão, por sua vez, vinculada à religiosa oposição entre civilização e barbárie, sendo que a arte naturalmente civilizada constitui-se – esse é o delírio racista – como arte da “alta civilização”, da civilização avançada, adiantada, superior.
É por isso que boa parte da teoria da literatura se constitui como saber naturalizado, civilizado – a civilizada instituição teórica de prestígio, a civilizada opinião notória de fulano ou sicrano sobre tal autor e tal obra, a civilizada Faculdade de Letras – sobre a arte, uma forma de mediação da arte com o leitor cujo propósito principal é fazer com que o leitor viva a arte como arte naturalmente arte, nela mesma, por ela mesma, superior, em oposição à arte bárbara, de quem não sabe fazer arte, porque não civilizado suficientemente, porque um ignorante do cânone.
Eis porque a oposição entre cânone e não cânone é paralela e convergente com a oposição civilizado e bárbaro. Só o civilizado naturalmente cria cânone, não sendo circunstancial que a palavra cânone, como sabemos, derive de contexto religioso, porque se trata disto: religião colonizadora, racismo.
E é nesse horror da arte nela mesma artificiosa, na competência naturalizada da arte, que, dizem os entendidos, habita o rigor.
Mas continuemos. Considerando que a pergunta que ora respondo aponta para a ideia de arte como artifício, como desnatureza, penso que a resposta que teria que formular deveria estar em relação à seguinte pergunta outra: como a arte te aconteceu, conscientemente, como artifício que contribuiu para desnaturar aspectos de sua vida, vividos como se fossem naturais?
Aí então tenho uma resposta artificialmente biográfica. Por intervenções despóticas do artificialismo do capital, minha família – e todas com o mesmo naturalizado destino – foi desterrada do campo, do interior de Minas Gerais. Família grande, somos 15.
Órfãos de pai, minha mãe, na adversidade, enfrentou todas as naturalizações do não patriarcal, econômico, social, civilizacional, para, não sem artifício, nos educar com dignidade ou com o artificial desejo de dignidade e de justiça. Minha primeira experiência artificial, contranatural, vem de minha mãe, como quando roubava milho verde, moranga, de roças no entorno de Rio Pomba, interior de Minas – coisa comum entre moleques, a molecada.
Um dia, tendo levado morangas roubadas pra minha mãe, ela me disse de repente: “Sabe, Luisinho, Cristo também roubava. Na época dele, se você não era dono de escravo ou escravo, você não era nada. E então, não sendo dono de escravo e nem escravo, como ele fazia pra se alimentar? Simples: ele via as plantações e pegava o que tinha pra comer, porque sabia que nada era de ninguém.”
Esse foi o primeiro estranhamento antinatural com o qual convivi através da artificiosa e revolucionária – porque clamava justiça – arte de minha mãe. Ela foi minha primeira referência “canônica”, mas sem angústia de influências.
Vivemos com muita privacidade e a escola pra mim sempre foi muito naturalmente reforçadora de minha pobreza, como é pros pobres de modo geral. Eu não estudava, enfim, a naturalidade do saber escolar. Estava muito atrasado, com três reprovações diretas na sétima série.
Tive a felicidade de ser aluno de um professor de português, chamado Éder Simões. Ele nos apresentou a arte como artifício pelo simples fato de ter nos estimulado a ler, o que me possibilitou duas experiências artificiais com a leitura poética especialmente.
Trabalhava numa farmácia em Belo Horizonte – trabalho que detestava, obviamente, pelo que o veneno farmacológico tinha de artificio naturalizado pelo lucro monopólico. Me sentia tomado pelo peso das naturezas da vida: a natureza trabalho, saber, família, droga, transporte coletivo, televisão, dificuldades econômicas e tantas outras.
Eis que, lendo como já estava lendo, com razoável independência – diria incompetência - me deparei com o poema “Navegar é preciso”, de Fernando Pessoa, cujos primeiros versos assim dizem: “Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:/"Navegar é preciso; viver não é preciso. /Quero para mim o espírito [desta frase, /transformada a forma para a casar como eu sou: /Viver não é necessário; o que é necessário é criar.”
E essa foi minha segunda inferência literária.
Depois, lendo um soneto de Shakespeare, me aconteceu o seguinte artificioso verso: “Amáveis são os préstimos da adversidade”.
Eis minha terceira inferência.
E eis que esses três acasos concorrentes - a arte de e para a justiça, de minha mãe, os versos de Pessoa e o de Shakespeare - me mostraram que a vida como natureza adversa não importa, ou melhor, não pode ser naturalizada, ou vivida como natural, razão pela qual devemos criar através dela, contra ela, após ela, desnaturalizando sem cessar as adversidades que a vida naturalmente adversa, pela pobreza – mas não apenas -, nos impõe ou enfia naturalmente pela goela abaixo.
Foi através do artificioso contato com esses três poetas que aprendi a arte da arte do artifício ou estive em melhores condições de artificiar.
Eis porque esses clichês bem-pensantes, comuns em naturalizados professores de literatura, são naturalmente uma tolice institucional, de poder, como o clichê de que a literatura não serve pra nada. Serve sim, serve para desnaturalizar naturezas, inclusive a natureza desse e nesse clichê, cujo inconsciente político naturalizado é o seguinte: a arte não serve pra nada porque está naturalizada como artifício enquadrado num gênero, numa obra, numa autoria, numa relação de poder opressora que serve ao fim e ao cabo ás classes dominantes que não desejam que pintemos os sete por aí, artificializando todo e qualquer poder, que apenas consegue assentar-se como poder porque naturaliza despoticamente seu próprio artifício, universalizando-o.
2 - Quais foram suas grandes influências? Teve algum texto em particular que te fez ter querer ser escritor?
Resposta: Como concebo arte como um efeito de artifício sobre naturalidades institucionais, sociais, econômicas, estéticas, culturais, são, pois as obras – literalmente falando, mais que no sentido de gênero – de artifício que me interessam, residindo aí minha relação com o barroco e o surrealismo, com Gregório de Matos, com Lezama Lima, com James Joyce, com Drummond – o Drummond como artificio do fracasso -, Bandeira (como o artifício da imanência), João Guimarães Rosa, Franz Kafka e tudo que, mesmo não parecendo artificio, o é por outras artificiais vias que desviam, de modo que tudo pode ser lido como arte, como poema, como romance, quando não mais nos prendemos em gêneros prefixados: um livro de filosofia é um romance ou um poema longo; outro sobre religião, também, e tanto mais são criação, arte, quanto mais não são livros neles mesmos, presos a um campo discursivo, concebido como naturalmente isso e aquilo, como o campo discursivo de teoria da literatura ou de outro segmento qualquer.
Tudo é arte, criação, quando não cai na armadilha naturalizante da segmentação teórica, epistêmica, estética.
3 – Você nasceu em Rio Pomba - MG, onde passou sua infância. Depois se mudou para Belo Horizonte e, muito tempo depois, Vitória - ES. Como foram essas mudanças? Elas influenciaram seu jeito de escrever?
Resposta: A mudança é o exílio de quem é expulso dos lugares a fim de buscar melhores condições de vida. O risco corisco delas ou nelas é de, buscando melhorar a vida, e melhorando efetivamente, a arte perder a potência do artifício e assentar-se na metafísica da presença a si de cargos, de capitais simbólicos, de segmentações teóricas, disciplinadas, ao naturalmente aprender a citar as fontes, as origens, sendo tragado pelo mito cosmogônico da arte na arte pela arte, sem a arte artificiosa do não saber sabendo, porque mudar é não saber, não ser, não assenhorar-se de. Se, minimamente que seja, ascendi e se tendo ascendido desisti de mudar, então a arte em mim acomodou-se. A ver.
4 – Você é professor adjunto de Teoria da Literatura, na UFES, poeta, tradutor e ensaísta. Contudo, percebemos um forte teor marxista em seus artigos, confere? Conte-nos como você enxerga o mundo através da literatura.
Resposta: Se o poder é relação de forças e se uma dada relação de força se impõe naturalizando-se e universalizando-se, o despoder ou artificio ou arte é o contrário desse movimento universalizante, padronizante, naturalizante. O natural não precisa se mostrar, de tão mostrado está, por isso é também universal por redundância. Nada é mais panfletário que o naturalizado, o natural. A arte nela mesma, como gênero apolítico é panfletarismo, engajamento monológico, ainda que pareça sóbrio, neutro, diversificado, pois faz parte da arte naturalmente arte ser nela mesma polifônica; isso não é arte, mas o clichê enquadrado e panfletário da ideia de arte.
Se o que escrevo tem marcas é porque não são universalmente bem-vistas, aceitas, convencionalizadas, naturalizadas, razão pela qual faço arte, artificio, com o marxismo, porque, jogando com suas negadas marcas-operário, marcas-lutas-de-classes, marcas-opressão, marcas-oprimidos, marcas-extorsão-da-riqueza-comum, jogo com a natural negação delas, porque a ausência delas em competentes artigos assépticos e em textos de criação esquadrinhados é prova cabal da importância delas, da potência de artifício que tais marcas políticas têm pra desnaturalizar as suas expulsões da República das Belas-Letras naturalizadas e transformadas em savoir faire de artifícios, sem o ser efetivamente.
Todas essas marcas são personagens do mundo e, quando naturalizadas, perdem a potência revolucionária; e, quando, por outro lado, não aceitam nem as suas naturalizações e nem as dos poderes constituídos e constituintes, tornam-se marcas de artes coletivas, revolucionárias, artificiais.
A arte nada tem a ver com savoir faire; pois é um não saber sabendo ou um saber do não saber ou a apropriação artificial das técnicas e dos saberes naturalizados com a finalidade sem fim de desnaturalizá-los.
Eis aí meu ponto de vista a partir da literatura.
5 – Você lançou os livros “Paradoxias” (1999), “Cor vadia” (2002), “Silvo de Luis Caixeiro” (2003), “José Lezama Lima: anacronia, lepra, barroco e utopia” (2007). O que representou cada uma dessas obras no seu estro?
Resposta: “Paradoxias” é o romance artificioso de uma analfabeta que desescreve, ao escrever errado em linhas certas. “Cor vadia” é o livro da vadiagem das cores ou marcas ou escritas artificiosas, na dança do impossível crível, sob o ponto de vista do pobre, do negado. “Silvo de Luis Caixeiro” é livro de silvos de espinhos-ágrafos na gramaticalidade biográfica do mesmo, razão pela qual é uma biografia inventada; um biografismo de marcas tanto mais individuais quanto mais coletivas, tanto mais verdadeiras, quanto mais falsas. “José Lezama Lima: anacronia, barroco e utopia” é uma menor teoria sobre os artifícios das marcas ou desmarcas de alteridades, tendo como diálogo o sistema poético do mundo do poeta cubano José Lezama Lima.
6 – Como escritor, você, aparentemente é eclético, pois já produziu obras em verso e em prosa. Quais são as diferenças e singularidades dessas práticas? É possível mesclar gêneros?
Resposta: Nunca soube fazer poesia. Nunca soube fazer ficção. Minha escrita é um não saber fazer, desfazendo.
Não é propriamente intencional. Simplesmente sou incompetente. Penso que a incompetência é também matéria artificiosa de arte, quando lançada nas caras – tidas como rostos divinos - das naturalizadas competências.
Arte, como artifício, nada tem a ver com competência e é por isso que tudo é arranjo e desarranjo para sua desnaturalização de primeiras, segundas, terceiras e infinitesimais naturezas: amores, ódios, ressentimentos, desejos; naturalizados e presunçosos delírios de classe, de dinheiro, de posições simbólicas.
Tudo pode fazer-se como desnaturalmente arte.
7 – Seu livro “O evangelho segundo Satanás” tem intertexto com o livro “O evangelho segundo Jesus Cristo”, de José Saramago? Fale-nos da estrutura de “O evangelho segundo Satanás”.
Resposta: “Evangelho” é livro do desenvangelho, por isso é de demos, porque demos, o povo, a polifonia, o dissenso, é a arte como potência do falso; só demos destrona as naturalizações. O romance “O evangelho segundo satanás”, pois, é livro que tenta ou atenta encapetar as naturalizadas evangelizações literárias, históricas, biográficas, epistemológicas, políticas que pesam milenarmente nas costas de todos os artifícios desdivinizados.
Só demos é artificio, razão pela qual nas novelas televisivas é sempre o pobre que é artificioso, diabólico, enquanto que o bom é sempre natural, primeira, segunda e terceira pessoa ou presença a si da bondade naturalizada.
O livro, pois, não tem estrutura, pois estruturar é naturalizar.
8 – Você cita em “O evangelho segundo Satanás” personagens que existem na vida real. Como se deu esse processo?
Resposta: O livro é uma paródia, canto paralelo, da vida real, a partir da desmetafísica da não presença a si. Nesse sentido, ser real ou não real, é arte na ficção da arte.
Somos sempre esse delírio de mundos outros naturalizados em nomes próprios, quando identificados pela história, por instituições acadêmicas, pelas narrativas da presença a si de nós mesmos.
É por isso que somos o que não somos e o que não somos é tudo que importa: a invisível vida comum dos não seres massacrados pelos pesos dos representados e naturalizados pelas maquinarias de consagrar os consagrados, mostrar os mostrados, eleger os eleitos, que são nossas reacionárias instituições.
Evangelho segundo satanás esboça ou tenta os não seres que nos negamos ser.
9 – Você lançou recentemente o livro "América Latina, Literatura e Política - Abordagens Transdisciplinares". Fale-nos acerca dessa obra.
Resposta: É um livro de ensaios sobre obras de escritores latino-americanos, incluindo brasileiros: Cortázar, José Lezama Lima, Clarice Lispector, João Gilberto Noll, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos. Os dois últimos ensaios são posições políticas – de polis, demos – sobre mimese e sobre o que entendo por literatura.
A abordagem é transdisciplinar, pois não se atém a nenhuma unidade discursiva, ou teórica.
A dimensão política do livro está relacionada com a palavra proibida pra valer nas naturalizadas teorias sobre literatura e mesmo no âmbito da criação: a palavra política, proibida porque, volto a dizer, é demos, artifício, polifonia, dissonância; palavra que transborda os saberes e as práticas instituídas, vistas, vividas e concebidas como adequadas, necessárias, rigorosas.
É, enfim, como tudo que faço, um livro assistêmico, precário, processo, esboço, devir.
10 – Quais são os planos de Luis Eustáquio Soares? O que podemos esperar para 2012?
Resposta: Simplesmente prosseguir, erradamente, errantemente, artificiosamente, impossivelmente, apesar de tudo; apesar de mim. Muito obrigado pela oportunidade!
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