Anaximandro Amorim, advogado, professor e escritor. Membro da Academia Espírito-Santense de Letras, cadeira 40 (patrono Antônio Ferreira Coelho). Autor dos livros “Brasil de Ontem, Hoje e Sempre” (1994), “Asas de Cera” (1995), “Concupiscência” (2003) e “A História de um Sobrevivente” (2010) e do site www.anaximandroamorim.com.br. Confira, abaixo, a crônica “A terceira ponte e eu”, que foi publicada na antologia “Escritos de Vitória, nº 27 – Pontes”:
A TERCEIRA PONTE E EU
Nasci em 1978. A Terceira Ponte também. Naquela época, Vitória não deveria ter por volta de umas duzentas mil almas. No entanto, o ar de província bucólica e pacata já começava a mudar e há muito se estudava uma terceira saída para o continente. A parte norte da cidade ainda era meio agreste, lá pelos idos de 1980 e o lugar onde está o Shopping Vitória era um imenso areal chamado “Aterro da Condusa”. De vez em quando, ele era palco de algum evento. Lembro-me de “Eva, a mulher gigante”, uma réplica de um ser vivo em que podíamos entrar para conhecer todos os órgãos do corpo humano. É óbvio que eu não consegui: a fila estava gigantesca, de um ponto a outro do aterro. Mas foi ali, pela primeira vez, que tomei conhecimento daquela ponte que cresceria comigo.
Antigamente, Vitória contava apenas com duas grandes pontes: a chamada “Ponte Florentino Avidos”, ou “Cinco Pontes”, a primeira a ligar a ilha ao continente, construída em 1928, um avanço para a época, e a “Segunda Ponte”, de 1979, que ligou Vila Velha e Cariacica ao miolo da capital. Antes delas, atravessar a baía, só de catraia. Para uma capital que tinha pretensões de ser grande, duas pontes eram pouco. Assim, foi no governo Élcio Álvares que o primeiro pilar da futura “Ponte Darcy Castello de Mendonça”, nome de um radialista e deputado estadual que as novas gerações desconhecem e de que as antigas sequer se lembram, foi concretado.
O problema é que ela demorou muito a sair. Falta de verbas. Os primeiros pilares, fincados em terra firme, custaram a se multiplicar, no que o povo capixaba batizou o embrião de ponte de “A Ponte do Gato”, porque, todo mundo sabe, os bichanos odeiam entrar na água... Entrava governo, saía governo, e nada. A ponte virou até bandeira política – tinha candidato que prometia sua conclusão. E a coisa quase aconteceu, pois, anos mais tarde, foram construídos alguns dos pilares que avançavam sobre as águas – e aí, a “Ponte do Gato” virou “Ponte do Pato”, porque, por bastante tempo, a Terceira Ponte ficou parada ali, como um patinho na lagoa...
Em 1987, uma acirrada disputa ao Governo do Estado tinha como bandeira a conclusão da obra, opondo, de um lado, Max de Freitas Mauro e, do outro, Élcio Álvares, numa campanha que ficou marcada pelo slogan “Volta Élcio”. Eu tinha 9 anos. A Ponte também. Lembro-me que o ex-governador queria concluir o que começara. Não conseguiu e ficou a cargo de Max o término. Era uma questão de honra para o Espírito Santo e até um passeio com a população foi feito, terminando do lado de cá da ponte. Do lado de lá, Vila Velha. No meio, um vazio a ser preenchido. E no entorno, obras e muitas obras. E eu via, pela primeira vez, a ponte tomar forma e brincar com o meu imaginário. Lembro-me que ela era um dos nossos assuntos preferidos.
Foi quando, finalmente, a peça final daquele quebra-cabeças seria encaixada. Com 70 metros de altura, um imenso vão de ferro, vindo de barcaça e içado por poderosos guindastes deu remate àquele que seria o mais novo cartão-postal da cidade de Vitória e do Estado do Espírito Santo. Era o segundo maior do Brasil e notícia até na mídia nacional! Um marco da modernidade e da prosperidade, fazendo com que o Espírito Santo, finalmente, entrasse na rota do desenvolvimento e com que eu, então um menino, quisesse me tornar engenheiro ou arquiteto, o que nunca aconteceu... Tempos mais tarde, o vão virou matéria de novo, quando uma destemida repórter de um canal local mostrou como ele era por dentro!
A Terceira Ponte foi finalmente entregue ao povo capixaba em 23 de agosto de 1989. Eu faria 11 anos. Ela também. A inauguração foi marcada por mais uma caminhada da população, capitaneada pelo Governador Max Mauro. Como eu quis ir! Contentei-me em, pelo menos, assistir pela televisão. Ainda posso ver o carro oficial do Governo do Estado, um Opala preto como a cor dos cabelos de um Max Mauro ainda jovem. Eram 3,3 km de extensão, com 250 postes e 250 lâmpadas. De um lado, a capital; do outro, a cidade mais antiga do Estado; acima, as bênçãos do Convento da Penha; e abaixo, o mar, separado, agora, de uma ponta a outra, por um vão livre de 260m, para que os navios pudessem passar.
Cruzamos a Terceira Ponte alguns dias depois, minha família e eu, quando a euforia havia diminuído. Iríamos a Vila Velha para passear, só como pretexto. No início, o pedágio, com os semáforos comandados de dentro das cabines e as cancelas automáticas me impressionaram! E depois, as pistas largas e daí o estreitamento, que mais parecia engolir os veículos; era como se decolássemos... Via o mar de lá de cima e as casas tão pequeninas, as pessoas e os automóveis, tudo parecia ser de brinquedo! E, no meu êxtase, olhei para o Convento da Penha e me benzi, pedindo proteção de Nossa Senhora para passar pelo vão de ferro, que tanto medo me inspirava. Foi a única vez em que meu irmão e eu fizemos silêncio, assustados pelo barulho abafado dos pneus. Depois voltamos aos pinotes, no banco de trás do carro, fazendo sinal de positivo para os outros motoristas e dando adeuzinho para as câmeras de segurança.
Com o tempo, a ponte virou clichê. Lembro-me da primeira vez que passei sobre ela de carro, sozinho, logo após tirar carteira. Morrendo de medo, é claro, mas, dessa vez, do trânsito propriamente dito, como qualquer motorista iniciante. Lembro-me também da troca de iluminação, em 2003, que realçou ainda mais a beleza da construção. Infelizmente, parece que só de uns tempos para cá o brasileiro se atinou de que pontes podem embelezar uma cidade... Houve também protestos sobre o preço do pedágio, incidentes; mas nada como quando a população capixaba se engalfinhou embaixo de um dos pilares para ver um navio esvaziar comportas para passar com alguns dos guindastes que seriam usados no porto da capital. Aquela tarde foi mágica!
32 anos podem não ser tanto para alguém, mas já são alguma coisa para uma ponte, que, além disso, possui 21 anos de fluxo. Como a população vitoriense simplesmente dobrou de tamanho desde então, a Terceira Ponte mostra constantemente sinais de esgotamento. Já se fala em uma quarta via de acesso e até uma quinta para desafogar o trânsito de mais de um milhão de veículos na Grande Vitória. Só pela ponte são em média 58 mil automóveis por dia, com um crescimento de 450% desde sua inauguração. Quem sabe antes do nosso aniversário de 40 anos esses problemas já tenham sido resolvidos? Em todo caso, espero fazer muitos anos com ela. Crescemos juntos, a Terceira Ponte e eu e, como bons capixabas que somos, assistimos a tantas transformações, nessas três décadas. Um dia, partirei. Ela ficará. Mas tenho certeza de que deixarei um pouco de mim naquele que certamente é um dos maiores símbolos da nossa identidade.
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