De repente, em meio a tantas mortes de
celebridades, que é a palavrinha que agora se usa para botar no mesmo saco
tanto aqueles que se tornaram célebres por alguma coisa feita de bom para a
humanidade, quanto aqueles que têm seus suados quinze minutos de fama, como
Andy Warhol profetizou; de repente, em meio a tantas mortes esvaziadas de seu
caráter de dor, luto ou melancolia, de tanto que são pisadas e repisadas na
mídia; de repente, não mais que de repente, em meio a tantas mortes de anônimos
e famosos, de comandantes e comandados, em meio a tantas mortes, enfim, eu me
lembro que é aniversário da morte de uma amiga. E, em memória dela, uso este
espaço em que vocês me leem para dizer: “RIP, amiga”. “Requiescat in pace”.
Um dia, um dia muito bonito e com sol, minha mãe me mandara doce de carambola feito em seu fogão de lenha, na Barra. E eu pensava “ninguém faz doce de carambola bom assim”. E só faltava minha mãe para passar a mão de leve por cima de minha cabeça, como ela fazia, para que eu me sentisse feliz. Foi nesse dia que arranjei essa amiga.
Ela provou do doce de carambola e falou: “nunca vi doce de carambola bom assim”.
Era muito engraçada, nossa amizade. Quase não nos víamos, nem nos falávamos. E a amizade aí, mansa, mansinha. Doce e suave. Que nem bicho domado. Nada dessas amizades explosivas de ocasião, que duram alguns meses e desaparecem. Ou amizades de nichos seletos, muito metidas à besta, em que os parceiros trocam figurinhas sobre conceitos filosóficos aplicados às relações humanas e outras tantas bobagens dignas de qualquer roletrando – instrumento inventado por outro amigo meu e que traz, de um lado, uma roda com uma fita gravada com alguns aforismos e, do outro, uma roda com uma faixa que traz o nome de alguns pensadores cultuados (de preferência os filósofos franceses dos anos setenta e oitenta, mas pode haver o nome de alguns alemães, ingleses e outros tantos suecos) e que funciona assim: você gira a primeira faixa e depois gira a segunda. Onde elas pararem e coincidirem, lá estará uma bela citação com o nome de um filósofo, prontinha para o uso e para embasbacar.
A nossa amizade era aquela de um café entre uma aula e outra, um silêncio tranquilo, um comentário sobre um filme ou um livro, um rabisco, um até já... Mas, acima de tudo, era essa coisa impalpável que dá à gente a certeza de em qualquer hora achar a pessoa com o mesmo sorriso, o mesmo gesto, a mesma palavra de solidariedade. Pois amigo que é amigo é assim: um fluir, um fio contínuo, um rio de águas seguras. Mesmo que o mundo role, que o tempo passe e que tudo em volta se modifique.
Minha amiga, ela gostava de música e de falar sobre flores. Nem todas. Preferia violetas. Eu lhe contei de uma vez que plantei uma latada delas sob um pé de flamboyant. E que poucas vingaram. E se alguma espiava entre as folhas, eu corria e cuidava com carinhos de irmã, afofando-lhe a terra, chegando-lhe o adubo. Ela ouviu com delícia. Depois chegou trazendo para mim uma violeta com asinhas de seda, na palma da mão.
Pouco mais eu sei dela. A amizade pede certo resguardamento. É apenas um toque delicado. Uma leve tangência entre as criaturas. Não exige as qualidades imediatas que a gente pode até suportar no amor.
Sei que além de violetas, Brahms e doce de carambola, minha amiga adorava viver.
Ah, estou esquecendo. Era magra, morena e odiava viajar de avião. Um caminhão pegou o carrinho em que ia, na estrada (faz dez anos, havia sol – dizem – um sol muito claro e bonito). E a matou.
Um dia, um dia muito bonito e com sol, minha mãe me mandara doce de carambola feito em seu fogão de lenha, na Barra. E eu pensava “ninguém faz doce de carambola bom assim”. E só faltava minha mãe para passar a mão de leve por cima de minha cabeça, como ela fazia, para que eu me sentisse feliz. Foi nesse dia que arranjei essa amiga.
Ela provou do doce de carambola e falou: “nunca vi doce de carambola bom assim”.
Era muito engraçada, nossa amizade. Quase não nos víamos, nem nos falávamos. E a amizade aí, mansa, mansinha. Doce e suave. Que nem bicho domado. Nada dessas amizades explosivas de ocasião, que duram alguns meses e desaparecem. Ou amizades de nichos seletos, muito metidas à besta, em que os parceiros trocam figurinhas sobre conceitos filosóficos aplicados às relações humanas e outras tantas bobagens dignas de qualquer roletrando – instrumento inventado por outro amigo meu e que traz, de um lado, uma roda com uma fita gravada com alguns aforismos e, do outro, uma roda com uma faixa que traz o nome de alguns pensadores cultuados (de preferência os filósofos franceses dos anos setenta e oitenta, mas pode haver o nome de alguns alemães, ingleses e outros tantos suecos) e que funciona assim: você gira a primeira faixa e depois gira a segunda. Onde elas pararem e coincidirem, lá estará uma bela citação com o nome de um filósofo, prontinha para o uso e para embasbacar.
A nossa amizade era aquela de um café entre uma aula e outra, um silêncio tranquilo, um comentário sobre um filme ou um livro, um rabisco, um até já... Mas, acima de tudo, era essa coisa impalpável que dá à gente a certeza de em qualquer hora achar a pessoa com o mesmo sorriso, o mesmo gesto, a mesma palavra de solidariedade. Pois amigo que é amigo é assim: um fluir, um fio contínuo, um rio de águas seguras. Mesmo que o mundo role, que o tempo passe e que tudo em volta se modifique.
Minha amiga, ela gostava de música e de falar sobre flores. Nem todas. Preferia violetas. Eu lhe contei de uma vez que plantei uma latada delas sob um pé de flamboyant. E que poucas vingaram. E se alguma espiava entre as folhas, eu corria e cuidava com carinhos de irmã, afofando-lhe a terra, chegando-lhe o adubo. Ela ouviu com delícia. Depois chegou trazendo para mim uma violeta com asinhas de seda, na palma da mão.
Pouco mais eu sei dela. A amizade pede certo resguardamento. É apenas um toque delicado. Uma leve tangência entre as criaturas. Não exige as qualidades imediatas que a gente pode até suportar no amor.
Sei que além de violetas, Brahms e doce de carambola, minha amiga adorava viver.
Ah, estou esquecendo. Era magra, morena e odiava viajar de avião. Um caminhão pegou o carrinho em que ia, na estrada (faz dez anos, havia sol – dizem – um sol muito claro e bonito). E a matou.
(Crônica
de Bernadette Lyra publicado no Jornal A Gazeta em 11/03/13)
Bernadette Lyra
nasceu em Conceição da Barra, Espírito Santo, em 1938. Formada em
Letras, especializou-se em cinema e fez pós-doutorado na Sorbonne, em
Paris. Teve contos incluídos em coletâneas holandesas e já foi indicada
para o prêmio Jabuti. E-mail: blyra@uol.com.br.
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