No decorrer dessa
semana, publicaremos, em três partes, o texto “O comunismo moral-prático do
século 21”,
de Luís Eustáquio Soares, que foi publicado no Site do “Observatório da
Imprensa”. Confira a 1ª parte do artigo:
HUGO RAFAEL CHÁVEZ FRÍAS (1954-2013)
Inspiro-me novamente no livro Crítica da razão indolente. Contra o desperdício da experiência (2003), de Boaventura de Souza Santos, a fim de sustentar o argumento de que a história das civilizações tem sido marcada pela relação hierárquica entre três formas de conhecimento: 1) o conhecimento moral-prático, 2) o conhecimento estético-expressivo; 3) o conhecimento cognitivo-instrumental.
O conhecimento moral-prático é
simplesmente o que está vinculado ao reino das necessidades, inscrevendo, no
plano da produção do saber, a seguinte virtude: penso, produzo conhecimentos,
porque crio as condições técnicas, laborais, afetivas, psicológicas,
ambientais, estéticas, comportamentais, discursivas, religiosas e mnemônicas
que garantirão a dignidade alimentar, habitacional, corporal, educacional para
os conhecidos (a família, as pessoas da comunidade) e para os desconhecidos de
outras comunidades, outras famílias, paragens, terras.
O conhecimento moral-prático é intensamente
solidário nos planos: 1) geracional, tributário da experiência não apenas
fundada na autoridade do adulto, mas também na dinâmica ininterrupta e
dialógica que subjaz o convívio entre as diferentes idades humanas;2) temporal,
que envolve a relação complexa entre o passado, o presente e o futuro, sem
primazia hierárquica de uma dimensão temporal sobre a outra, uma vez que o
princípio da solidariedade é ativo, razão por que emerge e se alimenta das
relações entre os estratos de tempo, acumulando-se de perspectivas; 3)
psicológico, na medida em que a mente social é tanto mais saudável quanto mais
a individual também o for; 4) ambiental, marcado pela interação de respeito
entre os espaços humanos e não humanos, sem a imposição senhorial do humano
sobre os outros seres;5) sagrado e profano, que assim interagem:
Planos maniqueístas no âmbito do trabalho
Plano sagrado: 1) a experiência do mais velho deve ser reverenciada; 2) o passado, como arquivo de múltiplas experiências vividas, deve ser cultivado ritualmente pelos vivos; 3) a mente social tem primazia sobre a individual, razão por que deve ser protegida por todos como garantia fundamental para a saúde individual; 4) a diversidade geográfica e a cosmológica se inscrevem no ambiente social, inspirando-nos e encorajando-nos, através da reverência a montanhas, rios, mares, estrelas, sol, lua).
Plano profano: 1) as gerações mais novas,
sem deixar de reverenciar, agitam a dimensão sagrada dos adultos, efetivando
assim o diálogo ativo entre as gerações;2) os desafios do presente, produzindo
o futuro, dilatam o passado, reavivando-o permanentemente; 3) as psicologias
individuais, ou de grupos humanos, atiçam sem cessar as possibilidades
expressivas da mente social; 4) o plano humano aprofunda cada vez mais a relação
com a esfera geográfica e cosmológica, tornando-nos, cada vez mais, seres que
são ao mesmo tempo humanos e maquínicos, naturais e artificiais, de tal sorte
que, em processo, o cosmos, como o fora por excelência, agita sem cessar nossos
perfis, sempre inacabados, inventando o humano a partir do fora do humano.
É evidente que o conhecimento moral-prático descrito, pelo menos tendo em vista as grandes civilizações (inclusive a nossa) nunca se expressou livremente, pois (quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?) dissimetrias entre os planos sagrado e profano produziram (não como fatalidade) separações hierárquicas entre gerações, entre temporalidades, mentalidades e ambientes. A intensificação das apartações entre o sagrado e o profano, suas dissimetrias, produzem por sua vez hierarquias e inventam, no lugar da interação solidária, planos maniqueístas do tipo superior e inferior, no âmbito do trabalho, gerando relações de opressão de classes; no étnico, produzindo racismos; no de gênero, sedimentando o patriarcado.
Os sons da fala das aristocracias
Eis os nossos infernos, produzindo outros: separações, apartações, violações.
O conhecimento estético-expressivo, por
sua vez, dá-se no plano da linguagem, entendida em termos semióticos: a verbal,
a escrita, a icônica, a corporal, musical, a matemática, enfim, de todas, as
que já existem e as que criamos, por nossa conta e risco, sujeitos de
linguagens que somos.
Se tivermos como referência as
civilizações pré-modernas, sobretudo as ágrafas, não alfabéticas, o conhecimento
estético-expressivo de maior prestígio nelas inscreveu-se tendo em vista uma
interação entre linguagem verbal, a fala, e icônica, de base teológica, de tal
sorte que a autoridade da fala, de quem fala, estava intimamente ancorada no
rosto ou perfil social de quem fala. O conhecimento estético-expressivo, nesse
caso, de prestígio, reduz-se a um segmento social que o domina e o explora: a
aristocracia.
Inventamos assim a fala correta em oposição à incorreta ou quem sabe falar e quem não sabe – logo, deduz-se, quem produz conhecimento estético-expressivo de valor e quem não tem valor porque não o produz antes de tudo porque não é o rosto do saber expressivo, com sua correta prosódia, seu divino rosto.
Após o advento da escrita alfabética esta
gradativamente foi tomando o lugar da linguagem verbal, garantida, como valor,
pelo rosto divinizado do aristocrata. Como a natureza da escrita alfabética é
imitação de sons da fala, não por acaso ela foi projetada tendo como referência
os sons da fala das aristocracias, considerados sons da verdadeira prosódia, da
verdadeira fala, de quem sabe a língua, logo da própria língua, seja lá qual
for – os demais, os analfabetos, são, portanto, duplamente caluniados: não
sabem nem falar e nem escrever. Não sabem escrever porque não sabem falar e não
sabem falar porque não sabem escrever – e toma lição pedagógica no lombo, seu
burro!
Conhecimento moral-prático sempre ocupou a base da pirâmide
O conhecimento cognitivo-instrumental é produzido através do acúmulo de experiências, em cooperação, no plano técnico-científico. O conhecimento cognitivo-instrumental (como os das engenharas, das matemáticas, físicas, químicas) ocupa a linha de frente da produção, no plano concreto, do amálgama entre cultura e natureza, pois intervém nesta, modificando-a e ao mesmo tempo ampliando os espaços produtivos humanos. Novas técnicas, novos insumos energéticos, novos artefatos, novas máquinas, novas infraestruturas, linguagens, novas humanidades, novos conhecimentos cognitivo-instrumentais, novos desafios, mutações.
Fundamentalmente, no entanto, o
conhecimento moral-prático, em si, agrega tanto o conhecimento
estético-expressivo como o cognitivo-instrumental. Tudo vem, nasce e é autoria
dele, do conhecimento moral-prático. A ruptura entre o plano sagrado e profano,
produzindo separações hierárquicas, inventou, por desgraça, esta aberração; a
separação hierárquica entre os saberes, como se o conhecimento moral-prático
pudesse estar dissociado do estético-expressivo e este do
cognitivo-instrumental.
Digo pudesse porque fundamentalmente,
insisto, todo conhecimento é um mesmo bloco aberto que envolve saberes
morais-práticos, estético-expressivos e cognitivo-instrumentais. Não existe,
pois, um conhecimento moral-prático que não seja também estético-expressivo e
cognitivo-instrumental, assim como não existe um conhecimento
estético-expressivo que não seja igualmente cognitivo-instrumental e
moral-prático ou um cognitivo-instrumental sem saber moral-prático e
estético-expressivo.
A separação, portanto, entre os conhecimentos, é ao mesmo tempo uma tática e uma estratégia de poder, no seu sentido mais evidente: a produção de domínio de uns sobre o outros. A história da dominação é também a da separação entre os conhecimentos. Nela e através dela, o conhecimento moral-prático sempre ocupou a base da pirâmide, sempre foi concebido como inferior, errado, improdutivo, ignorante, carregando nas costas às cargas impostas tanto pelo conhecimento estético-expressivo como pelo conhecimento moral-prático separados.
(Luís Eustáquio Soares)
Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor de Teoria
da Literatura na UFES.
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