sexta-feira, 15 de março de 2013

O COMUNISMO MORAL-PRÁTICO DO SÉCULO 21 - PARTE 2


No decorrer dessa semana, publicaremos, em três partes, o texto “O comunismo moral-prático do século 21”, de Luís Eustáquio Soares, que foi publicado no Site do “Observatório da Imprensa”. Confira a 2ª parte do artigo:


[...]

Os saberes e os poderes

Até os começos da modernidade, o topo da pirâmide das e nas relações de poder foi ocupado pelo conhecimento estético-expressivo, primeiramente sob o signo da linguagem falada por aristocratas, ícones eles mesmos de todo saber de prestígio, com seus poderes justificados por teologias, na suposição de que o modo como falavam fosse a copia encarnada da fala dos deuses; um saber estético-expressivo aristocrático que delirava estar fundamentado teocraticamente; segundamente, por sua vez, pela escrita alfabética, inaugurando um longo período de conhecimento estético-expressivo de dominância grafocêntrica tão avassaladora que a escrita alfabética passou a existir, ser apresentada, como se fosse todo o conhecimento estético-expressivo possível. Com isso, mais alguns nós opositivos foram acrescentados, como eco, na relação entre opressor e oprimido, a saber: alfabetizado versus analfabetizado; inteligente versus burro; civilizado versus bárbaro, num contexto em que o opressor, justificado teologicamente a sê-lo, é também o alfabetizado, que é o inteligente, que é o que sabe falar, que é o civilizado, que é, portanto, o que está no direito de combater os bárbaros, burros, analfabetas.

Como a modernidade pode também ser definida como um período histórico em que o poder torna-se indissociável do conhecimento cognitivo-instrumental, de seu controle e efetivo uso, produtivo e militar, pela burguesia, uma mutação importante ocorreu na ordem dos conhecimentos, na virada da Idade Média para Idade Moderna, a saber: o conhecimento cognitivo-instrumental gradativamente foi ocupando o topo da pirâmide e o estético-expressivo, por sua vez, de forma não menos gradativa, foi sendo deslocado para uma posição intermediária, com a permanência, obviamente, do conhecimento moral-prático na base da pirâmide, carregando todos os poderes nas costas.
O esquema abaixo mostra como se deu a relação entre o poder e as formas predominantes do conhecimento, antes e após o advento da modernidade:

Primeiro Quadro: Ordem dos saberes e dos poderes “até” a Idade Moderna

Conhecimento estético expressivo  - Razão teológica usada para exprimir e justificar os lugares sociais, as práticas e os saberes;
- A aristocracia e o clero se apresentam como os representantes de Deus na Terra;
- O conhecimento estético-expressivo circunscrito à escrita alfabética é a base ou a referência a partir da qual tanto a aristocracia quanto o clero se expressam, expressando a si mesmos
Conhecimento cognitivo-instrumental
Conhecimento moral-prático

Segundo Quadro: Ordem dos saberes e dos poderes “a partir” da Idade Moderna

Conhecimento cognitivo-instrumental - Gradativa perda de espaço social da aristocracia e do clero;
2.Crise da razão teológica inscrita na perspectiva estético-expressiva da aristocracia e do clero;
- Emersão de uma gradativa visão laica da vida;
- uma gradativa consciência agônica da morte
-definitivamente controlado pelo poder burguês a partir da Revolução Burguesa.
Conhecimento estético-expressivo
Conhecimento moral-prático

A produção da modernidade no plano dos conhecimentos

A emersão do conhecimento cognitivo-instrumental, como a referência central do mundo dos valores e da produção, impôs uma perda de espaço social gradativa e contínua da escrita alfabética.
A literatura, para ficar num exemplo, em oposição às belas letras, surgiu, sempre gradativamente, através da perda de prestígio da escrita alfabética. Esta decaiu, como linguagem estético-expressiva de referência, porque a aristocracia e o clero, castas que dominavam a escrita alfabética, também decaíram. É possível definir a literatura, nesse sentido, como um campo discursivo que se volta contra seu suporte, a escrita alfabética, seja desconstruindo-o, seja debochando de seus valores clássicos, de seu sistema de prosódias aristocráticas, seja, por outro lado, propondo um intenso diálogo com o conhecimento moral-prático, incorporando seus valores, suas demandas, suas dissonâncias e enchendo-se, portanto, de mundos.

Dom Quixote (1615), obra do escritor espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616), sob esse ponto de vista, inaugura o discurso literário, liberando-se da referência centralizadora do poder aristocrático e clerical. Não é circunstancial que o protagonista da narrativa, Dom Quixote, sendo nobre, é a pessoa de quem se ri, o que equivale a rir do conjunto da aristocracia e seus valores.
Por outro lado, a relação entre Dom Quixote, o louco nobre letrado, e o personagem Sancho Pança, como perfil do conhecimento moral-prático, na narrativa de Miguel de Cervantes, dá o tom do futuro do conhecimento estético-expressivo no decorrer da modernidade: será usado para trapacear e fazer promessas ao conhecimento moral-prático, como ocorre na relação entre Dom Quixote e Sancho Pança ou estabelecerá um efetivo diálogo promissor com o conhecimento moral-prático, produzindo uma verdadeira transculturação literária, social, econômica, política, epistemológica?

A partir da modernidade, portanto, temos, como possibilidade para a produção da própria modernidade, no plano dos conhecimentos: 1) O conhecimento cognitivo-instrumental continuará separado dos demais, aprofundando cada vez mais seu poder sobre os demais e sobre o mundo; 2) O conhecimento cognitivo-instrumental estabelecerá um pacto com o conhecimento estético-expressivo, a fim de encurralar mais e mais o conhecimento moral-prático, dominando-o e domesticando-o; 3) O conhecimento cognitivo-instrumental estabelecerá um pacto com o conhecimento moral-prático empurrando para o lixo da história a empáfia meritocrática do saber estético-expressivo, reduzido à escrita alfabética; 4) O conhecimento estético-expressivo se submeterá ao conhecimento cognitivo-instrumental, seguindo seus passos e compassos e, ao mesmo tempo, trairá a si e ao conhecimento moral-prático; 5) o conhecimento estético-expressivo passa ou passará a dialogar apenas consigo mesmo, produzindo, por exemplo no campo das ciências humanas, saberes centrados em si mesmos, segmentados, para iniciados; 6) o conhecimento estético-expressivo estabelece um pacto com o conhecimento moral-prático e, por consequência, ambos, o conhecimento moral-prático e o estético-expressivo, vinculado à escrita alfabética, articulam-se para se apropriarem do conhecimento cognitivo-instrumental produzindo uma verdadeira revolução; 7) O conhecimento moral-prático se apropria do conhecimento cognitivo-instrumental e destrona de vez os valores aristocráticos e burgueses do conhecimento estético-expressivo, forçando-o a reaver a si mesmo; 8) o conhecimento moral-prático se apropria do conhecimento estético-expressivo rumo à apropriação do conhecimento cognitivo-instrumental, mudando a face do mundo tornando-o ao mesmo tempo moral-prático, estético-expressivo e cognitivo-instrumental; 9) o conhecimento moral-prático se isola tanto do conhecimento cognitivo-instrumental e do estético-expressivo, tornando-se presa fácil igualmente de ambos.

As práticas e os saberes sem separação

A história da modernidade até os dias de hoje é inseparável da relação entre os conhecimentos, tal como descritos acima. Destaque-se, a propósito, que todas as relações ocorreram, mas as predominantes foram: 1) o conhecimento cognitivo-instrumental, sob o domínio burguês, cooptou o conhecimento estético-expressivo, vinculado à escrita alfabética, que passou a produzir saberes ratificando a territorialidade burguesa do conhecimento cognitivo-instrumental; 2) O conhecimento estético-expressivo produziu saberes auto-referenciais, voltados apenas para si, desdenhando do diálogo estratégico com conhecimento cognitivo-instrumental e principalmente do diálogo necessário com o conhecimento moral-prático.

Todas as tentativas do conhecimento moral-prático de produzir livremente seu próprio destino foram esmagadas, seja no centro do sistema-mundo, como ocorreu na Comuna de Paris (1871), seja na periferia, como se deu, tendo em vista alguns exemplos advindos do Brasil, em Quilombo dos Palmares (1655-1695) e na comunidade de Canudos (1896-1897). Ambas tentativas de produção de liberdade protagonizadas pelo conhecimento moral-prático foram brutalmente massacradas, sendo esta a palavra de ordem que se espalhou por todos os lados no mundo: o conhecimento moral-prático é sempre exemplarmente massacrado quando se rebela e procura produzir linhas de fuga num mundo extremamente hostil, que milenarmente o condena a ser às costas sobre as quais o peso dos poderes se instala e refestela.

A questão de base, esfíngica, portanto, desde sempre, para os poderes instituídos, é: o conhecimento moral-prático deve ser tomado, sequestrado, vilipendiado. Talvez o maior equívoco das tentativas de produção de sociedades socialistas, no século 20, advenha do fato de que em nenhuma delas houve protagonismo efetivo, em perspectiva, do conhecimento moral-prático, no seu sentido mais evidente: acabar de vez com a separação dos conhecimentos, produzindo um conhecimento moral-prático comum, pela simples razão de que tudo vem e advém do mundo moral-prático, que deve romper com todos os degraus da pirâmide social, a fim de dilatar a horizontalidade de tudo, em tudo, num imenso e cosmológico espaço liso, fora de todo parasitismo dos espaços estriados, hierárquicos.
O desafio do socialismo do século 21, que eu prefiro chamar de comunismo do século 21, portanto, é este: a produção de um mundo em que o conhecimento moral-prático incorpore o cognitivo-instrumental e o estético-expressivo, ressingularizando-os a fim de que expressem a vida comum, sem separação entre as práticas e os saberes. O comunismo do século 21 é o comunismo moral-prático através do qual a questão de base é mesmo a base, o reino das necessidades: a alimentação, a saúde, a educação (moral-prática, bem entendida), a moradia digna, a satisfação individual (ou de grupos) indissociável da coletiva, a vida, enfim, comum, produzindo, no comum, entre comuns, o comum – o comunismo do século 21.

Uma dimensão cultural domesticada

Como os poderes instituídos escutam e auscultam os fluxos presentes e futuros do conhecimento moral-prático, eles procuram, como é de se esperar, antecipar seus passos a fim de surpreendê-los nas encruzilhadas não apenas os reprimindo, quando é o caso, mas também e antes de tudo produzindo a farsa de um mundo moral-prático, como se fosse possível o comunismo moral-prático dentro do capital, a serviço do capital, rendido ao capital.
Procurando antecipar a necessidade vital do comunismo do século 21, sob a batuta do conhecimento moral-prático, através do qual tudo se torna moral-prático, a pós-modernidade do capital, das corporações, produziu o teatro mundial da sua farsa, a saber: o sistema midiático planetário como suporte da cultura de massa mundial. Eis aí a farsa do comunismo moral-prático do século 21.

A carta na manga que institui mundialmente essa farsa é a cultura, vivida de forma separada, sobretudo da dimensão econômica. A cultura separada é o cenário mundial do comunismo da cultura de massa do século 21, iniciado no século 20. Sempre de forma separada dos outros planos da vida, como o econômico e o político, o comunismo cultural da cultura de massa produz a mentira de uma democracia mundial supostamente protagonizada pela cultura moral-prática, de tal maneira que todos, independente de seu perfil socioeconômico, são transformados em cultura moral-prática, rompendo, por exemplo, a separação entre o erudito e o popular, a partir da farsa de que tudo é popular, de que todos somos populares, no campo exclusivo da cultura esquadrinhada pelas tecnologias cognitivo-instrumentais de comunicação.

Esse arranjo mundial do comunismo moral-prático do século 21, reduzindo-o a uma domesticada dimensão cultural, supostamente moral-prática, só foi possível porque ele é instituído a partir do pacto entre o conhecimento cognitivo-instrumental, ligado às novas tecnologias de comunicação, com o conhecimento estético-expressivo. O que ocorreu e está ocorrendo é que o conhecimento cognitivo-instrumental das tecnologias de informação produziu, sob o domínio do capital, a linguagem do conhecimento estético-expressivo dominante no mundo todo, que não se inscreve, como suporte, obviamente, na escrita alfabética, mas na da cultura de massa como farsa de um comunismo cultural moral-prático.

A cultura de massa

O que está em jogo, em plena construção experimental, é a montagem de um teatro mundial de afirmação do comunismo moral-prático da cultura de massa como estratégica montagem levada a cabo com o propósito de compensar e ao mesmo tempo de evitar, antecipando, as lutas populares necessárias para a construção da única vertente possível do comunismo que pode salvar a humanidade, o comunismo moral-prático do século 21. Este, além de assumir o protagonismo do conhecimento cognitivo-instrumental e estético-expressivo, quebrando a espinha dorsal da hierárquica relação entre homem e natureza, inventando-se permanentemente, não pode admitir sua redução à dimensão cultural separada das outras esferas da vida. Por isso o comunismo do século 21 tem como princípio não a concepção de cultura predominante nos tempos atuais, fundamentalmente separada e reduzida a si mesma, mas a cultura como o conjunto da práxis humana, que festeja antes de tudo a produção de sua liberdade em relação ao jugo do conhecimento cognitivo-instrumental em sua versão mais funesta; a produção das tecnologias das armas de destruição em massa, como a bomba atômica e a de nêutrons, por exemplo.
Resulta daí a importância de sua inserção política, fundada na percepção clara do objetivo real do comunismo moral-prático reduzido à cultura de massa, a saber: combater e evitar comunismo moral-prático do século 21 subjugando-o ao conhecimento cognitivo-instrumental das tecnologias midiáticas contemporâneas. Estas, como um ventríloquo, dissimulam o conhecimento estético-expressivo possível para o conhecimento moral-prático do século 21, como que a dizer, e dizendo efetivamente: o conhecimento estético-expressivo do comunismo moral-prático é a cultura de massa mundial.

Temos, assim, a produção desta farsa: o conhecimento moral-prático finalmente possui seu conhecimento estético-expressivo valorizado mundialmente: a cultura de massa. Através dele, de seu conhecimento estético-expressivo, o conhecimento moral-prático pode se expressar livremente, como suposto sujeito livre de sua produção simbólica, num contexto em que a verdade é simplesmente a seguinte: o conhecimento cognitivo-instrumental adquiriu tanta força, em sua complexa dimensão tecnológica, de alcance planetário, sob a batuta do imperialismo ocidental, que subjuga sem cessar tanto o conhecimento moral-prático quanto o conhecimento estético-expressivo, através da farsa da união de ambos – demanda, como vimos, que estava na base do começo da produção da modernidade.

Um neomarcatismo multicultural

É por isso que o comunismo moral-prático do século 21 não pode permitir, sob hipótese alguma, este escândalo patológico: o domínio imperial do conhecimento cognitivo-instrumental das tecnologias midiáticas – mas não apenas –, porque, caso contrário, não será de fato comunismo moral-prático do século 21, cuja premissa fundamental é a seguinte: tudo vem e advém do conhecimento moral-prático, inclusive e principalmente o conhecimento cognitivo-instrumental; tudo deve ser dirigido pelo conhecimento moral-prático realmente ativo, porque inventa sem cessar seu conhecimento estético-expressivo a partir de seu, porque de todo mundo, conhecimento cognitivo-instrumental. É evidente que essa situação não ocorre no comunismo moral-prático da cultura de massa, porque nela e através dela o conhecimento moral-prático é editado pelos interesses comerciais da oligarquia dona das multinacionais do Ocidente, que é a que controla o conhecimento cognitivo-instrumental de ponta por todos os lados do mundo.

Esse é o equívoco de base do sociólogo Hermano Viana, estudioso da cultura funk carioca e idealizador do programa Esquenta!, da TV Globo, que costuma atirar sem rumo contra supostos intelectuais elitistas que, segundo ele, tendem a negar e desqualificar a produção cultural da periferia do sistema-mundo, a partir do preconceito de que o favelado não é capaz de criar seu próprio conhecimento estético-expressiva, de forma livre e digna. Quero crer na boa vontade de Hermano Viana, mas não posso deixar de assinalar seu equívoco. Esquenta! é uma concessão da Casa Grande, que controla o conhecimento cognitivo-instrumental das tecnologias midiáticas, elaborado nos parâmetros estabelecidos não por Hermano Viana, tampouco pela periferia, mas pela própria Casa Grande midiática, que controla meticulosamente a prosódia estético-expressiva do programa, marcada pela mistura de sensualidade moral-prática e seu convívio com madames cariocas, como se fossem as condições possíveis do comunismo moral-prático: conviver, fornecendo seu corpo sensual, com a Casa Grande, eliminando totalmente o litígio, em nome do respeito à diversidade.

Não falo em nome de supostos intelectuais elitistas. A própria ideia de intelectual, elitista ou não, é uma aberração para a perspectiva moral-prática, que é ao mesmo tempo intelectual e sensorial, sem se limitar à ordem funcional dos discursos e das divisões das práticas e dos saberes. Imaginemos, para continuar, que pudéssemos, como convidados, fazer apresentações culturais na ante-sala de Auschiwitz, a fim de alegrar, na hora do almoço, os diretores e os obedientes soldados da holocáustica prisão, sem questionar, através de nossas danças, sensualidades, vozes, corpos, a câmara de gás, a prisão como um todo e, por extensão, o próprio nazismo, em seu fundamento mesmo. Por mais exagerado que pareça o exemplo fornecido, não é isso que ocorre no programa Esquenta!? Onde, dançando, rindo, sambando, cantando funk, existe questionamento sobre o formato elitista, francamente pró-imperialista, do jornalismo da TV Globo? Onde o questionamento de sua programação fílmica, como estratégica propaganda simultânea do american way of life e das intervenções bélicas americanas, massacrando povos, em nome do destino manifesto de meia dúzia de plutocratas brancos, donos de corporações, inclusive midiáticas? Supor que tais questionamentos, e uma infinidade outros, é ridículo, é igualmente supor que a cultura popular deve desvestir-se de sua realidade política, em nome de um neomarcatismo multicultural que concebe a diversidade possível apenas se aceita expressar-se nos parâmetros do velho plano colonial de mostrar a bunda para inglês ver, que é o que se transformou o carnaval carioca na sua configuração apoteótico-midiática.

(Luís Eustáquio Soares)

Confira a 1ª parte do artigo: http://outros300.blogspot.com.br/2013/03/o-comunismo-moral-pratico-do-seculo-21.html


Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor de Teoria da Literatura na UFES.

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