“A paixão segundo G. H.” é uma romance que tem
estilo de um relato confessional, por sua vez apresentado de um modo teológico/
religioso em que se evidencia um caráter paradoxal: santidade/ pecado; salvação/
danação, inferno/ paraíso. Assim, será observado a paródia do texto divino e
como o divino é representado no texto lispectoriano. Mesmo tendo
intertextualidade com a Bíblia, a obra, como aponta Olga de Sá, é uma paródia
do texto bíblico, pois o trata com ironia e o constrói/ desconstrói. Paródia,
de acordo com Sant’Anna, é um “discurso em progresso, em que os dois planos
devem ser necessariamente discordantes e deslocados, e onde há uma perversão do
sentido original”.
As referências à Bíblia já aparecem no título “A
paixão segundo G. H.” que remete a “Paixão de Jesus Cristo segundo Mateus”. “As
narrativas da paixão estão no Novo testamento. Nelas, os sofrimentos de Cristo
são relatados por seus discípulos. Entretanto, aqui, é a própria narradora quem
relata sua paixão. G. H., ao se despedir sua empregada, decide fazer uma
limpeza geral no quarto de serviço, o qual ela supõe imundo e repleto de
inutilidades. Fica incomodada por Janair, a empregada negra da qual não se
lembra do rosto, manter tudo organizado. Numa parede do quarto, a
protagonista-narradora vê um desenho de Janair. Neste há um homem, uma mulher e
um cão. As figuras se desconhecem. G.H. cabe perfeitamente no desenho duro da
parede. Ela está presa e sem referência. Ao se identificar com o desenho
(“múmia grafada”), G.H. desloca-se para o desenho, abrindo brecha para a
paixão.
Revelação
Após recuperar-se da frustração de ter encontrado
um quarto limpo e arrumado, G. H. depara-se com uma barata na porta do armário.
Depois do susto, ela esmaga o inseto e decide provar seu interior branco,
processando, então uma revelação. Como a personagem Ana, do conto “Amor”, G. H.
vivencia um momento epifânico. A partir daí, ocorre a metamorfose de G.H., a
perda de seu “eu”, pois seus sistemas social e psicológico se perdem. A
narradora “comunga” com a barata e assim localiza a vida divina, mas nega a
idéia de Deus enquanto ser pessoal e transcendente. Segundo Waldman, a barata é
um animal impuro para o judaísmo. Assim, a personagem perde sua existência
social e ganha uma existência impessoal, crua, viva. Pela negação de si, G. H.
alcança a realidade. Ademais, através da ostia, o homem recebe o corpo de
Cristo e transcende. G. H. recebe a barata e regressa a um estágio pré-humano.
De acordo com Olga de Sá, “a inversão da paixão de Cristo do plano da
transcendência para o plano da imanência, situa-se entre os processos da
paródia”.
Ao ingerir o inseto, G.H. rompe com valores
absolutos. Além disso, a matéria branca da barata parece com a matéria fetal
expelida por G.H. ao provocar um aborto. Ao se deparar com essa “matéria
branca”, a personagem acaba fazendo uma paródia com a oração “Ava Maria”. G.H.
perde a máscara social reconhecida pelos outros e a volta à origem se dá pela
união com o “outro” não humano. Dessa maneira, a personagem-narradora vive uma
“via crucis do amor” (amor – sofrimento – alegria – amor) e perde, além da
identidade, a linguagem, pois passa a buscar a forma para expressar o neutro, o
cru, o não-humano, a existência, o ser, o indizível. A experiência mais radical
é percorrer o itinerário da linguagem, em direção ao silêncio. Ao perder sua
vida pessoal, G. H. destrói também a linguagem humana.
Inferno
Pode-se dizer que a protagonista desce ao inferno,
pois revela: “Inferno é o meu máximo”. Aqui, o inferno vem do amor e não tem
castigo, mas a narradora mantém o tom paradoxal, haja vista que vive o
sofrimento gozoso, o horrível mal-estar feliz. Ela retrocede para evoluir, vai
ao inferno para achar esperança.
Entretanto, “G. H. deseja voltar, recuperar sua
superficialidade vazia e leve, reintegrar-se no humano, fazer de conta que nada
viveu”. Mas a experiência de G. H. é mais radical. Não é uma epifania do ver, é
um ritual do comer.
Por fim, no que tange a estrutura do livro, também podemos
identificar o divino. O livro recorre a um procedimento poético: os capítulos
se iniciam com a última frase do capítulo anterior. É como se o romance como um
todo se constituísse numa cadeia, cujo fim implica num renitente recomeço. O
método de Clarice ratifica o paralelismo bíblico como procedimento presente
desde a estrutura formal da narrativa. A obra possui trinta e quatro capítulos,
mas um não usa o paralelismo, sendo assim, trinta e três (idade de Cristo)
possuem tal recurso. Essa estrutura lispectoriana só confirma que “A paixão
segundo G. H.” é uma pergunta e não uma resposta.
(Texto de
Ricardo Salvalaio publicado em “C2 + Caderno Pensar”, do Jornal A Gazeta, no
dia 09/03/2013)
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