Cleibson Freitas nasceu em 1985, no Espírito Santo, residindo sempre na cidade de
Cariacica. Filhos de pais humildes, tornou-se um apaixonado e curioso pelo ser
humano da vida comum. Graduado em Língua Portuguesa e Literatura de Língua
Portuguesa pela Universidade Federal do Espírito Santo, o escritor inicia sua
carreira com a publicação de O óvulo e o
ovo: tudo de novo. Nessa obra, Cleibson Freitas talvez
comece seu primeiro e verdadeiro encontro com a arte. Como ele mesmo diz:
“escrevo para ser livre. Ou melhor, brincar de ser livre, de ter prazer e
brincar de ser Deus. Escrevo para me esconder do mundo e anular-me por
completo. A literatura também serve para nos escondermos”. Confira, abaixo, o
conto “A verdadeira existência do Aleph”:
A VERDADEIRA
EXISTÊNCIA DO ALEPH
Na noite em que saí da casa de Maria Kodama, em 1989,
nunca mais fui a mesma pessoa; Nunca mais a minha vida foi a mesma; Decerto,
até mesmo o universo tava modificado.
Mas a verdade, a grande verdade mesmo, é que desde quando
o marido de Kodama morreu, o escritor Jorge Luis Borges, eu comecei a sentir
uma estranha mudança. É que, logo depois do falecimento de Borges, eu me
apaixonei perdidamente por Kodama. Minha obsessão amorosa foi tão grande, que
eu passava o dia arrumando diferentes maneiras de como ir vê-la. E assim eu fui
criando variados pretextos de como visitá-la até que, quando me dei conta,
estava frequentando sua casa três vezes por dia. Como era mágico estar lá! Aquela mulher,
descendente de japonesa, embora com toda a sua doçura, era incapaz de imaginar
o grau do meu vislumbre. Quando tava com Kodama, na casa dela, parecia que o
tempo parava só pra eu ficar apreciando cada pedaço de pele que me saltava aos
olhos. Algumas vezes, quando ela
começava a falar do ex-marido, o escritor Borges, uma cólera doentia se
apoderava de mim. Foi aí que comecei a temer a neurose da minha paixão, porque
eu tinha chegado ao ponto de sentir ciúmes até do passado de Kodama e do seu
eterno respeito pelo ex-marido, homem por quem ela teve uma grande devoção
durante o tempo em que viveram juntos.
Kodama, naquela noite, antes de me mostrar o objeto que
mudaria minha existência, me revelou coisas curiosas a respeito do ex-marido.
Falou da sua cegueira, contou sobre alguns dos seus pesadelos, quase todas as
noites, com tigres, espelhos, labirintos e armas, cujas cores eram sempre
estranhamente brancas. Mudando a expressão do rosto com um olhar triste, vi o
interior de Kodama chorar quando ela falou de uma mulher: Beatriz Viterbo.
Cabisbaixa, ela me disse que Borges nutriu durante muito tempo um amor tresloucado
por essa tal e que, pra homenageá-la, deu seu nome a uma personagem do seu
conhecido conto chamado “O aleph”.
– Quantas e quantas vezes, Sr. Mascarenhas, me disse ela,
mesmo depois da gente já casado, Borges não vinha me descrever os traços de
Beatriz Viterbo!
– E você, como reagia?
– Ora, Sr. Mascarenhas, eu aprendi com Borges que a gente
tem que se esforçar pra compreender a ternura e a alma dos poetas. Beatriz
Viterbo foi musa de Borges até ele morrer...
– Você o amava, Kodama? Você amava seu ex-marido?
– Ah! Sim, claro! Eu o amei muito.
– Voltando ao assunto: quer dizer então que a personagem
Beatriz Viterbo é um dado autobiográfico de Borges?!
– Sim, é!Beatriz Viterbo existiu de verdade, e Borges
esteve, durante toda sua vida, terrivelmente apaixonado por ela. Logo, assim
que ela morreu, Borges escreveu o seu conto e a homenageou. Mas há ainda, Sr.
Mascarenhas, nesse conto, outro personagem que também é autobiográfico: Carlos
Argentino Daneri. Borges teve um amigo que se chamava Carlos Argentino Daneri.
– Curioso, Kodama! Eu já ouvi dizer muito que a arte de
Borges tinha essas características, mas não imaginava que Beatriz Vi...
– Se prepare pro inacreditável, Sr. Mascarenhas! Se
prepare pro dado autobiográfico mais inacreditável! É algo assustador! Borges
só veio me revelar isso quando descobriu que estava com câncer e eu nunca
confiei a ninguém o que vou lhe contar.
– De que se trata?
– É uma longa história. Eu não sei se o senhor sabe, mas o
pai de Borges, o senhor D. Borges, tal como o filho, também desenvolveu a
deficiência visual. Estando uma vez em Genebra pra tratar dos olhos, o senhor
D. Borges foi presenteado por um médico genebrino com uma esfera miúda,
transparente, de aproximadamente quatro centímetros...
– Não me diga, Kodama, que...
– Sim, Sr. Mascarenhas! O objeto de que falo é o Aleph!
– Sinceramente! Não posso acreditar nesse disparate. Isso
já seria demais! O que tá havendo, Kodama? Por acaso você acha que eu não sei o
limite entre o real e o fantástico?
Ora, por favor...
– O senhor quer vê-lo, Sr. Mascarenhas? Ele está ali, no
porão, tal como aparece no conto de Borges! Deseja vê-lo?
– Gostaria, mas já está tarde e eu...
– Me acompanhe, Sr. Mascarenhas! Venha ver o senhor mesmo!
Venha e o senhor verá que eu não estou brincando.
Toda aquela conversa já tinha me deixado com muita raiva.
Primeiro, porque morria de ciúme só de ouvir Kodama mencionar o nome “Borges”!
Segundo, porque parecia que Kodama estava zombando de mim todo o tempo que
durara nossa conversa! E terceiro, que um homem inteligente quando está
apaixonado sente quando a mulher que ele ama quer humilhá-lo. Por vários
momentos senti uma ponta de humilhação em estar ali, de frente pra Kodama,
feito um imbecil, ouvindo-a tagarelar. E pior: quando notei, já estava seguindo
Kodama até o porão da sala de jantar. Mal terminei de descer as escadas, senti
logo aquele cheiro de coisa velha e mofada. Aquilo era mais que humilhante.
Kodama devia ser uma dessas mulheres perversas que gostam de ridicularizar o
amante. Como me senti ridículo descendo aquelas escadas! Por vezes, cheguei a
achar que Kodama fazia aquilo pra brincar com os meus severos sentimentos de
amor.
A imagem de descer aquelas escadas pra dar no porão era pra mim uma
metáfora da descida ao inferno. Nem mesmo uma criança faria aquilo! Nem mesmo
uma criança entraria num porão pra verificar a existência de algo absurdo! Só
mesmo um tolo, preso nas amarras tirânicas do amor, pra assumir aquela postura
humilhante. Todo um emaranhado de coisas ia se passando na minha cabeça até eu
terminar o último degrau e colocar os pés no chão.
– Sr. Mascarenhas, por favor! Não mexa em nada!
– A senhora não vai descer? Perguntei atordoado.
– Não, eu não entro aí! Tenho medo do Aleph!
– Eu não vejo nada aqui! Cadê, onde está, cadê o Aleph?! Não
tem nada, eu vou subir, vou voltar!
– Aí na sua direita, do lado desse baú, há um
caleidoscópio. O senhor está vendo?
– Não vejo, onde está? Ah! Sim, achei!
– Não, não! Espere, Sr. Mascarenhas! Não é exatamente no
Caleidoscópio que o senhor deve olhar! Em cima dele, olhe em cima dele! Há uma
pequena esfera transparente, feito uma bolinha de cristal, fixada na parte
inferior do caleidoscópio...
– Aqui, vi!
– Viu?! Sr. Mascarenhas, o senhor está diante do Aleph, do
fabuloso Aleph, do Aleph que perturbou a vida de Borges e onde ele viu o tigre
dos tigres, o labirinto dos labirintos, o espelho dos espelhos... Tem certeza
que deseja meter o olho aí, Sr. Mascarenhas?!
– Isso não passa de uma esfera luminosa colada num
caleidoscópio apontado pro céu...
– Então coloque o olho.
Meu Deus... Era o Aleph! A verdadeira existência do Aleph!
Eu vi! Era o Aleph, ele estava ali, exatamente como a ficção de Borges
descreveu! Quando coloquei o olho, eu vi, eu vi tudo! Quando coloquei o olho
fui insuflado por uma vertigem incomunicável. Aí eu vi! Eu também vi o que
Borges narrou no seu conto. Eu vi as formas eternas da terra, a configuração
dos astros, vi a primeira manhã do tempo, vi os seres tomando forma e as
moléculas se acoplando umas nas outras, vi a ordem das cores e toda a origem
cosmológica, vi os primeiros instantes de luz, vi os primeiros instantes de som
e de cheiro, vi os primeiros instantes da alegria e da tristeza, vi a morte, vi
a vida, vi o mundo decifrado, vi o universo decodificado, vi a formação do azul
do céu e suas nuvens, vi os grãos de poeira que somos nós dentro do buraco
vazio do cosmo, vi os contornos da flor se unindo a mim no mesmo átomo, vi as
moléculas que se foram e as que ainda virão, vi a terra tomando a forma
redonda, vi as pessoas deixando de existir e outras entrando na existência, vi
todos os espermatozóides, vi todos os óvulos e ovos, embriões e placentas, vi o novo, vi a
desconfiguração da matéria, vi a vida, descobria o que era a vida, vi o Aleph descortinando
meus olhos, vi o Aleph curando todas as cegueiras do mundo e o mundo enxergando
a si mesmo...
Quando fui embora da casa de Kodama, notei que um mendigo
dormia na calçada e que uma lâmpada do poste havia se apagado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário