1.
Em diálogo com Deleuze e Guattari, assumo
o argumento de que o capitalismo vive de fluxos, com fluxos, pelos fluxos, de
forma hiperpragmática. Estes, por sua vez, simplesmente podem ser traduzidos como
forças terráqueas, sociais, tecnológicas, artísticas, identitárias,
cosmológicas, como, enfim, quaisquer forças, independente de suas qualidades
intrínsecas, razão por que, na fábrica mundial que é o capitalismo, tanto faz
se as forças em questão forem, sob o ponto de vista das sociedades, democráticas, despóticas, terroristas,
esquerdistas, patriarcais, femininas, racistas, liberadoras, fundamentalistas,
revolucionárias, sexuais, criativas, operárias, narcísicas, solidárias.
2.
O capitalismo, sobretudo o contemporâneo, atua no planeta como um todo, transformando
inclusive as fronteiras nacionais em forças a serem manipuladas, aqui e ali,
assim e assado, em conformidade com os desafios desse ou daquele contexto
histórico. É por isso que, de antemão, a expressão relação de forças, sob o
ponto de vista do capitalismo, é vivida literalmente, como desafio: o
capitalismo sempre atua nas relações entre as forças, independente delas
mesmas; independente, pois, do que as forças pensam sobre si mesmas, razão por
que, sob o ponto de vista do capitalismo, o relevante é que, mesmo pensando em
si mesmas, as forças possam produzir riquezas, movimentando sem cessar o valor
em mais valor, o lucro em mais lucro.
3.
Jamais, para o capitalismo, uma questão
tão comum para o campo das esquerdas se coloca como impedimento, a questão de
análise das relações de forças, a fim de observar se tal ou qual conjuntura é
favorável ou desfavorável. O capitalismo não atua ou deixa de atuar em função
das circunstâncias históricas das relações de forças. Ele simplesmente atua
através delas, independente delas. Quer admitamos ou não, o capitalismo vive de
desafios e seu principal desafio é o de superar os limites impostos pelas
relações entre as forças, transformando-se em sujeito absoluto delas ou
simplesmente as colocando em condições de, independente delas, insisto,
produzir mais-valia.
4.
É igualmente por isso que a questão
fundamental para o capitalismo é: como orquestrar as forças, todas elas,
combinando-as e/ou confrontando-as a fim de que, em conjunto – mesmo que seja
um conjunto belicoso –, tais forças possam concentrar renda, produzir riquezas, mover, enfim, como combustível, os
dínamos do capital?
5.
As forças são, pois, o combustível do
capitalismo. Eis porque ele as processa e reprocessa tendo em vista ao mesmo
tempo as resistências e as demandas colocadas por elas. Resistências e demandas
de forças nunca estão separadas, para o capitalismo, razão pela qual seu
principal desafio é o de antecipar suas demandas, a fim de contê-las,
domesticá-las, cooptá-las e orquestrá-las produtivamente, vencendo assim suas
resistências, ou simplesmente as transformando igualmente em forças produtivas.
6.
Para o capitalismo, a esfíngica questão de
sua sobrevivência é: diante de tais e quais resistências das forças existentes,
para além de qualquer idealismo, como domesticá-las, driblá-las e
orquestrá-las? Historicamente a resposta para essa questão, sob o ponto de
vista do capitalismo, tem sido uma e apenas uma: só é possível vencer as
resistências das forças sociais, se conseguimos êxito na manipulação de suas
demandas, inclusive inventando demandas para as forças – ou, eventualmente ou
não, inventando também suas resistências.
7.
Eis por que, para analisar se o
capitalismo está tendo ou não êxito na orquestração das forças sociais,
conseguindo dobrar produtivamente suas resistências, é preciso antes entender,
tendo em vista tal ou qual circunstância histórica, como se dá a resistência
delas e quais são, por consequência, suas demandas.
8.
Se dividimos a história do capitalismo em
duas metades, uma primeira a que podemos chamar de, simplesmente, modernidade
industrial e uma segunda à qual chamaremos de pós-modernidade, podemos
finalmente perguntar: quais eram as resistências colocadas pelas forças sociais
na primeira modernidade e quais suas demandas?
9.
Para responder a essa pergunta é preciso
fazer outra: quais eram os desafios colocados pelas tecnologias de produção do
capitalismo na modernidade industrial? Se o que marcou a modernidade
industrial, como epicentro de um processo histórico, foi a expansão colonizadora,
em busca de capital primitivo, de alguns países europeus, com o objetivo de
colonizar outros povos, então podemos entender que a principal demanda das
forças sociais da primeira modernidade era: liberar e descolonizar os corpos
colonizados por forças patriarcais, aristocráticas, étnicas, epistemológicas,
comportamentais e religiosas do capitalismo europeu, em expansão.
10.
Aos povos colonizados pelas forças sociais
do capitalismo europeu em expansão, durante a primeira modernidade, a questão
da resistência passava necessariamente, portanto, pela resistência em relação
às forças patriarcais, aristocráticas, étnicas, epistemológicas,
comportamentais e religiosas do capitalismo europeu, em expansão.
11.
No fundo e no raso, o melhor da arte, da
política, da ciência e do amor, para dialogar com Alain Badiou, durante a
primeira modernidade, foi profundamente marcado pela resposta criativa em
relação às forças dominantes do capitalismo europeu expandido e em expansão, de
vez que o capitalismo nunca deixa de se expandir sobre as forças, através
delas.
12.
Quando a expansão das forças dominantes do
capitalismo europeu entrou em crise em seu próprio terreno, produzindo forças
de emancipação internas ao contexto europeu, através de seus próprios
movimentos operários, intelectuais, movimentos artísticos, gerando um intenso e
revolucionário diálogo liberador com as forças sociais colonizadas, o epicentro
do capitalismo, localizado em território europeu, foi sendo gradativamente
sobrepujado pelo modelo norte-americano, que finalmente se tornou o novo
epicentro do capital a partir da Segunda Guerra Mundial.
13.
Com o deslocamento do epicentro do
capitalismo da Europa para os Estados Unidos, saímos da primeira modernidade e
entramos na pós-modernidade. Esta, sob o domínio do capitalismo americano,
constituiu-se e se constitui (ainda) como uma criativa resposta às forças do
capitalismo sobre as forças de resistência e emancipação produzidas no interior
da primeira modernidade capitalista.
14.
Se as forças de emancipação da primeira
modernidade resistiam às linhas de força da dominação do capitalismo europeu,
significa dizer que elas resistiam às forças produtivas (vinculadas ao mundo
laboral típico da Segunda Revolução Industrial), étnicas, epistemológicas,
aristocráticas, religiosas, patriarcais em jogo, como paradigma, no modelo
expansionista europeu, razão pela qual as demandas das forças resistentes eram
fundamentalmente produtivas (liberar-se da opressão das fábricas industriais),
étnicas (liberar-se da opressão do perfil étnico europeu), epistemológicas
(liberar-se da forma dominante de pensar da aristocracia europeia), religiosas
(liberar-se dos dogmas dominantes do cristianismo e judaísmo esquadrinhados,
como modelo, no interior da Europa), patriarcais (liberar-se do patriarcado
historicamente produzido, como modelo, pela expansão colonizadora europeia).
15.
Os Estados Unidos conseguiram sobrepujar a
Europa como epicentro do capitalismo porque produziram um modelo de capitalismo
que orquestrou, domesticou e pôs a serviço do capital as forças de liberação da
primeira modernidade, através da velha forma relacionada com a não menos
vetusta tática implicada com o desafio de mudar tudo para não mudar
absolutamente nada.
16.
A pós-modernidade é dominantemente o
capitalismo ao estilo americano, marcado pela orquestração produtiva das
demandas de emancipação laborais, étnicas, não patriarcais, epistemológicas,
comportamentais da primeira modernidade. Como, no regime capitalista, essas
demandas não podem, coletivamente, realmente ocorrer, a pós-modernidade do
capitalismo americano é nada mais e nada menos do que a mentira (e o engodo)
mundial de uma primeira modernidade opressora, finalmente publicitariamente
liberada.
17.
Os Estados Unidos conseguiram realizar
essa façanha, produzir um capitalismo publicitariamente emancipado em relação
às demandas liberadoras da primeira modernidade, porque dominaram não apenas as
novas tecnologias bélicas, mas também e talvez até antes de tudo (na verdade
tudo é arma de guerra) porque dominaram as tecnologias de comunicação: o rádio,
o cinema, a televisão e integração disso tudo nas novas tecnologias
cibernéticas.
18.
Foi e é através do domínio e estrito
controle das tecnologias de comunicação que os Estados Unidos literalmente
inventaram um mundo no qual e a partir do qual o que nunca existiu e nem pode
existir, sob o domínio do capital, num passo de mágica passou existir: um mundo
pós-moderno publicitariamente emancipado das antes de tudo opressões de classe,
éticas e de gênero típicas da primeira modernidade.
19.
A pós-modernidade capitalista americana,
portanto, é uma escandalosa mentira ecoada sem cessar pelas tecnologias de
comunicação sob o controle dominante dos Estados Unidos da América. Sua versão
hegemônica é profundamente mentirosa, publicitária, hipócrita, razão pela qual
nos vende por todos os lados gatos por lebres. A lebre do fim da opressão de
classes, como mentira orquestrada do fim da luta de classes, não passa,
portanto, do gato da velha opressão de classes que produz miseráveis aos
bilhões por todo o planeta. A lebre da liberação de gênero (a liberação
feminina, homoerótica) é o gato do patriarcado heterossexual de sempre. A lebre
da liberação étnica (negra, indígena, mestiça, amarela) é o gato do mais
restrito rosto modelar consagrado, religiosamente, pela expansão europeia. A
lebre das multiplicações de expressões religiosas não passa do gato (no sentido
metafórico) dos velhos dogmas do cristianismo medieval, adaptados.
20.
As tecnologias de comunicação sob o
domínio estadunidense são o reino das fantasias liberadoras da pós-modernidade:
mentiras, mentiras e mentiras, de modo que, quanto mais mentem que não existe
dominação de classe (que isso é coisa de maniqueístas anacrônicos e
ressentidos) mais a miséria dos trabalhadores se espalha, como nunca, por todo
o planeta. Quanto mais mentem que não existe dominação de gênero, mais esta é a
cruel realidade da massacrante maioria das mulheres e sexualidades não
heterossexuais por todo o mundo. Quanto mais mentem que a dominação étnica é
coisa do passado mais o genocídio indígena intensifica; mais o continente
africano é implacavelmente explorado, colonizado, atacado por drones invisíveis – e abandonado à fome
e às incessantes e provocadas guerras étnicas e religiosas.
21.
Não existe outro meio de compreender a
pós-modernidade americana, hoje planetária, senão através da constatação de que
tudo que vem dela, em sua esfera dominante, capitalística, é falso, é mentira,
é engodo, seja no cinema, seja no jornalismo, seja na arte, seja nas
publicitárias e estilizadas vidas étnicas, de gênero e de classes
cosmeticamente liberadas.
22.
Como as tecnologias de comunicação servem
no geral para reduplicação da vida e do mundo, a que podemos simplesmente dar o
nome de representação, a pós-modernidade americana tem como principal objetivo
o seguinte: fazer a mentirosa emancipada representação da vida e do mundo
ocupar o lugar da vida e do mundo tal como efetivamente são, fora dos
cosméticos publicitários, das representações enganosas. Esse processo de
substituição, da representação no lugar da apresentação, é tão vitorioso na
atualidade que se tornou o próprio lugar das resistências e das demandas das
liberações sociais, o que significa dizer que estas últimas partem da
representação mentirosa de suas publicitárias emancipações para geralmente
pesquisarem, pensarem, desejarem, professarem, noticiarem, criarem, enfim, as
suas respectivas demandas e publicitárias conquistas de liberações.
23.
Consideremos, a propósito, duas situações
recentes em que a representação ocupou ou pretendeu ocupar o lugar da
apresentação. O primeiro se deu na Venezuela. Os meios privados de comunicação
da Venezuela, colados, de forma colonizada, na crença dominante do capitalismo pós-moderno
de que a representação da realidade é a própria realidade, tentaram implantar
um golpe midiático elegendo como presidente o candidato de sua preferência.
Para tal, anunciaram, pelos quatro cantos, fraude eleitoral, com a esperança de
que a representação da fraude eleitoral, com seu simples e incessante anúncio,
se transformasse na própria inexistente fraude, provocando uma comoção nacional
a partir da qual um golpe de estado midiático se transformasse em golpe de
estado de fato. A segunda situação ocorreu com a transmissão planetária das
explosões durante a maratona de Boston, Estados Unidos. A representação
midiática de tais explosões, fundada na crença da maldade natural, ocupou
totalmente a realidade das explosões, de tal maneira a que o motivo real das
explosões, uma sociedade americana cada vez mais fraturada e violenta, não
fosse colocado em causa.
24.
Como o principal objetivo do mundo das
tecnologias de comunicação manietados pelo pós-moderno capitalismo americano é
o de fazer a versão, divertidamente, se transformar em conversão dos interesses
do próprio capital, inventando um mundo à parte, deixando-nos cegos ou, o que é
pior, fazendo-nos enxergar a partir do espelho da tela publicitária, sem ver
efetivamente o mundo, a única forma de resolver essa situação é com o próprio
mundo, tal como é, e não tal como a representação midiática dele diz-nos que
ele é, sendo essa a diferença fundamental da mentirosa versão midiática
venezuelana em relação à americana: a primeira não foi convertida em golpe
porque o povo encheu as ruas, inclusive defendendo a apresentação real da vida,
contra a golpista representação midiática, com a própria morte (sete pessoas
reais morreram); a segunda, por sua vez, como está tomada por um povo
convertido à publicitária religião midiática, como é o povo americano, fez
valer a sua golpista fraude: as explosões ou foram causadas por um terrorista
externo, inimigo da representação, ou por um doente de re-apresentação interno,
tão doente que, ao protestar, só consegue fazê-lo explodindo, ao revés, não a
maratona sem fim da corrida sem fim da representação da liberdade sem fim para
o seu lugar sem fim, o lucro oligárquico sem fim, mas uma publicitária (embora
composta por pessoas reais) maratona disso tudo.
25.
Desrepresentar as linhas de força da
pós-modernidade americana, denunciando sua fraude eleitoral planetária e ao
mesmo tempo enchendo o mundo com as verdadeiras demandas de emancipação da
primeira modernidade, fora de qualquer forma de publicidade e cosméticas
representações, é a única saída para a conversão à versão planetária ao
capital, que tomou todo mundo.
26.
Com todas as suas contradições, inclusive
muitas vezes encenando bufânicos choques entre representações e apresentações,
a Venezuela está, no mundo inteiro, na linha de frente da desrepresentação da
mentirosa e publicitária pós-modernidade americana.
27.
Sua fórmula é simples: povo no povo, povo
na rua.
28.
Eis porque o que realmente esta(va) em
jogo na disputa eleitoral na Venezuela era, é e será: a disputa política entre
a representação midiática e pós-moderna da vida e do mundo, fundamentalmente
cosmética e mentirosa; e a apresentação a um tempo das resistências e demandas
populares, basicamente ainda modernas. Se o chavismo perdeu espaço, através de
uma vitória apertada, é porque a midiática publicitária representação
pós-moderna, americanamente determinada, avançou sobre os desafios reais da
vida concreta do povo venezuelano, o que significa dizer que o eleito
presidente Maduro tem inevitavelmente o seguinte desafio: destronar de vez o
fraudulento oligopólio midiático que ainda domina mais de 80% do espectro
radioelétrico venezuelano.
29.
A luta pela liberdade e pela justiça dos
povos no contemporâneo está diretamente relacionada com a desrepresentação
pós-moderna estadunidense da vida e do mundo, razão pela qual estamos
desafiados a olhar, a ouvir, a sentir, a ser, enfim, o lado de fora da telinha.
***
(Luís
Eustáquio Soares é poeta,
escritor, ensaísta e professor de Teoria da Literatura na UFES)
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