A epígrafe sugere logo que há algo por trás das palavras de "Sagrada Família", novo livro de Zuenir Ventura. "Só dez por cento é mentira. O resto é invenção", dizem os versos de Manoel de Barros, embaralhando ficção e realidade, romance e reportagem, imaginação e memória. É uma mistura instigante que vem acompanhando o escritor nos últimos dez anos, o tempo necessário para que o livro ficasse pronto.
"Sagrada Família" já está nas livrarias, mas terá seu lançamento oficial na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que começa quarta e segue até domingo. A narrativa é em primeira pessoa, feita por Manuéu Araújo sobre histórias de seus parentes durante a década de 1940, quando era um menino e passava férias numa cidade do interior do Estado do Rio. Não por acaso, Zuenir, hoje com 81 anos, vivia em Friburgo naquele tempo e tinha parentes com biografias tão interessantes quanto as de seus personagens.
"Este livro é uma mistura de memórias: as minhas, as dos outros e as inventadas. Sempre fiz livros sobre o passado, mas a partir da memória dos outros. Este é o primeiro em que trabalhei com um material que me dava total liberdade. Não houve nada melhor do que saber que eu poderia inventar à vontade."
Enredo
O enredo principal segue as histórias em torno de Cotinha, Leninha e Nonoca, duas primas e uma tia de Manuéu que moravam na fictícia cidade de Florida. No início do livro, as meninas têm 15 e 14 anos, e tia Nonoca é uma "balzaquiana de 37". "Eu a teria descrito hoje como uma bela e excitante mulher, mas aos olhos da época, e principalmente aos meus, era ou devia ser uma veneranda, respeitável senhora", esclarece o narrador, no primeiro capítulo, após contar que flagrara a tia numa caprichada sessão de "injeção" com um farmacêutico da vizinhança.
Apesar de a "sagrada família" do narrador ser recordada com certa inocência, há no livro um tom irônico sobre as verdades mascaradas pelos mais velhos. São inevitáveis, portanto, comparações com os relatos rodrigueanos: picantes, que rompem hipocrisias e mostram o quão absurda pode ser a realidade.
"O Nelson Rodrigues trabalhava com o universo urbano, o Rio, a grande cidade. No livro, trabalho a pequena cidade, mas as questões comportamentais são parecidas. Os anos 40 são anos esquecidos. Quando alguém fala deles, sempre lembra a Segunda Guerra ou a ditadura do Vargas. Mas, sob a ótica do comportamento, há uma história incrível ali. Havia muito pudor e recato, e, por isso, era tudo escondido. O livro tem muito sexo porque naquela época não se fazia muito sexo, então as pessoas pensavam nisso o tempo todo. Foi um período de subentendidos."
Como seu personagem, Zuenir teve primas, uma tia e muitos casos de família a partir dos quais pôde tirar assunto para sua obra. Esse gênero do romance de memória é inédito em sua carreira. Zuenir é reconhecido primordialmente por sua imensa capacidade de apurar e narrar grandes reportagens. São dele livros clássicos como "1968 – O Ano que Não Terminou" (1989) e "Cidade Partida" (1994). Ambos de não ficção.
Com "Sagrada Família", seu texto segue uma narrativa estritamente ficcional. "Houve um dia em que meu editor me ligou curioso para perguntar se um episódio específico era verdade. Respondi que não sabia. Não sei o que é verdade e o que é invenção no livro. Pedro Nava dizia que, em matéria de memória, você não sabe quando acaba a lembrança e começa a imaginação."
Cadernos
Zuenir começou a escrever "Sagrada Família" há uma década, alternando seu tempo com outros trabalhos. Tudo à mão. Seus livros foram primeiro escritos em cadernos, antes de serem passados a limpo no computador. O atual romance está todo dividido em mais de dez caderninhos. As páginas são rasuradas, alguns parágrafos são riscados, e neles foram usados os nomes verdadeiros dos personagens nos quais o autor se baseou para o livro. O método, usado em todas as suas obras, serve para que possa ter sempre consigo um caderninho, de capa mole, dobrado no bolso. Ele ganha ao poder escrever em qualquer canto onde esteja.
Após "Sagrada família", Zuenir não sabe ainda qual será seu próximo trabalho, mas lembra que muitos casos de sua família ainda estão guardados no misterioso baú da memória. As chances de uma continuação, assim, são grandes. Talvez uma parcialmente inventada, talvez uma bastante real. Mas certamente apoiada no talento para contar histórias que Zuenir tem. (Agência O Globo)
Zuenir Ventura
Alfaguara, 232 páginas, R$ 36,90, em média
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