terça-feira, 2 de abril de 2013

TATAGIBA: RUA, POVO E CINEMA



Há 25 anos, a literatura do estado perdia um dos seus autores mais expressivos

Há 25 anos, Fernando Valporto Tatagiba se despedia da nossa Ilha. Natural de São José do Calçado, jornalista, escritor, poeta e, principalmente, observador atento e de olhar sempre crítico, deixou um legado que abrange contos, crônicas, poemas e estudos documentados sobre cinema. Como jornalista, era inflamado por seus ideais e assumia argumentos, na maioria das vezes, muito afiados. No papel de escritor, mantém-se sagaz e sutil, mas acrescenta um caráter inventivo inédito para a literatura feita no Espírito Santo até os anos 1970. Na verdade, parece impossível estabelecer essa divisão: Fernando Tatagiba era um jornalista-escritor e um escritor-jornalista, pois era capaz de levar para os jornais e revistas a sua personalidade poética e engenhosidade literária, mas também transformava a notícia jornalística em ficção, metamorfoseando os indivíduos das páginas policiais em autênticos personagens kafkianos.


Assim, com “a precisão quase maníaca de quem fizesse um inventário de imagens e rumores”, como diz Rubem Braga no prefácio do livro de crônicas “Invenção da saudade” (1982), a literatura de Tatagiba acontece na praça Costa Pereira, na rua Sete de Setembro, na Vila Rubim (“vida ruim!”), na praça Oito, no Britz Bar, nos becos, na escadarias.  A literatura que acontece. Porque estava inerente às ruas e, diversas vezes, os escritos nasciam ali mesmo. É comum associar a lembrança do escritor ao homem que sentava à beira das calçadas do Centro de Vitória com sua máquina de escrever. Com isso, Tatagiba se dedicava a observar a gente que por ali passava todos os dias, “talvez recordando o inexistente passado, talvez esperando um futuro nenhum”, gente de todos os tipos, pelos quais lhe interessava os mais incomuns.


Um vendedor de balas, um travesti sonhador, catadores de papel, “bêbados de quina e loucos de esquina”, pipoqueiros, balconistas, transeuntes solitários, andarilhos desequilibrados, são essas as vozes silenciadas que gritam nos textos tatagibianos, encantados pelas almas das ruas de João do Rio, injetados da violência urbana de Rubem Fonseca e tingidos pelo extraordinário de José J. Veiga.

É, portanto, das margens que se sustenta toda literatura de Fernando Tatagiba. Se a própria literatura capixaba é, por sua natureza, marginal ou periférica – conforme assinala Francisco Aurélio Ribeiro – o trabalho de Tatagiba enfatiza isso com ironia e originalidade. Como se para cada frase escrita houvesse uma crítica combinada de sentimento e rejeição à produção local.


A produção de Tatagiba era, sem dúvida, contra a corrente da elite literária altamente conservadora que se criou e se sustentou desde o século XIX, sempre imbricada de questionamentos e de problematização dessa situação cultural do Estado, que ainda hoje guarda traumáticas nódoas de sua visão exageradamente saudosista. Ao prefaciar “Rua” (livro de crônicas, de 1986), o autor se expressa de maneira patente ao que diz respeito à produção literária no Estado, ou seja, uma “Literatura de Convento da Penha”, pois “A Literatura Capixaba, excetuando-se a poesia, sempre foi feita pela burguesia – beletrista por excelência”. A Cidade-Sol, finalmente, revela-se através de outros ângulos, até mesmo com “o sol no céu da boca” (“O sol no céu da boca” é seu primeiro livro – de contos, lançado em 1980).


Cinema


“História do Cinema Capixaba” (publicado, postumamente, em 1988) foi o primeiro livro sobre a sétima arte no Espírito Santo. Suas páginas oferecem uma trajetória que inclui até mesmo relatos folclóricos. O que havia por trás das câmeras – e até mesmo entre elas –, inerente à cultura e à história do Estado, era também capturado pelo olhar de Fernando Tatagiba: “Quantos episódios interessantes ocorreram dentro da penumbra dos cinemas capixabas durante tantas décadas? É provável que ninguém saiba”.

O livro se apresenta em panorama de construções, realizações e ilusões, desde o surgimento do primeiro cinema capixaba (o Eden Cinema, inaugurado em 1907) até o ano de 1986, retratando o desaparecimento das salas de exibições da capital e do interior, por exemplo.

O traço subversivo da literatura de Tatagiba ultrapassa o conteúdo e também chega até a forma. A narrativa ganha estrofes, jogos de palavras e rimas; os símbolos, subtítulos, números, travessões, recuos, ilustrações, tudo isso compõe o repertório do autor. Para o professor José Augusto Carvalho, “tudo é usado e nunca repetido” em O sol no céu da boca, “é, antes de tudo, uma exibição técnica, de talento e de competência”.


A linguagem poética e concreta vista nos contos e nas crônicas vai se perpetuar, igualmente, na própria poesia, que repete, com a mesma liberdade de realização, essa peculiaridade. Além disso, com “Um minuto de barulho e dois poemas de amor” (livro de poemas, de 1994), percebemos sua inquietação reestabelecida e marcada por uma vida nostálgica e atenta à escória da sociedade. Desse modo, o lirismo dos versos tatagibianos cobre-se também de angústia e resistência: “Nos bares ao lado, as vozes. / Na avenida ao longe, os vultos. / No supermercado em frente, a volúpia do consumo. / Um cego passa, sem guia, arrastado pelo vento – um cão latindo atrás – como se fossem imagens de um curta-metragem”.


Explosão


Existem aqueles que defendem a qualidade literária segundo a sua permanência, de acordo com, podemos dizer, o atravessamento da obra no decorrer do Tempo e, em consequência, no decorrer da História. Há 25 anos, a cultura capixaba perdeu, tão logo e cedo, um forte colaborador. Embora toda essa produção literária tenha se esmaecido em meio ao parco incentivo cultural do Estado, Tatagiba está nas bibliotecas – na Biblioteca Pública do Espírito Santo, por exemplo, que tem um acervo especial para a Literatura produzida neste Estado – e nos sebos espalhados na cidade. Não é difícil perceber como ainda permanece atual a literatura deste escritor. É nova ainda por suscitar leituras sempre diferentes e inquietantes.

Premiado diversas vezes, Fernando Tatagiba foi reconhecido nacionalmente. Para Jorge Amado, tinha “a força e a fúria dos grandes contistas”, e deixa algumas marcas autênticas na produção literária capixaba. Sua literatura foi construída pelo povo, pela rua, tal como fazem Bernadette Lyra e Waldo Motta ativamente.


“O povo está nas ruas, o povo ainda está e sempre estará nas ruas, as estórias e os fatos do cotidiano ali, na esquina – como um painel na via pública – entrelaçados com a poesia do dia-a-dia, à espera dos mais sensíveis, dos autores iniciantes, da prole do proletariado, para que sejam transformados em vida, arte – e explosão”. Tatagiba é isso. É explosão. É um convite explosivo à criatividade e, principalmente, um convite explosivo aos novos escritores: busquem as ruas, percorram suas extremidades, juntem a isso imaginação e arte. Se explodir, é porque vale.


(Texto de Sarah Vervloet publicado em “C2+Caderno Pensar”, do jornal A Gazeta, no dia 30/03/2013)




Sarah Vervloet nasceu em Vila Velha, no Espírito Santo, em 1989. É graduada em Letras-Português pela UFES e atualmente cursa o Mestrado em Letras/ Estudos Literários na mesma universidade. É professora e também escreve irregularmente. Foi contemplada em um concurso de Literatura da Secretaria de Cultura do Espírito Santo, na categoria contista estreante e seu livro está no forno. E-mail: sarahvervloet@gmail.com e Blog: http://chadechama.blogspot.com.br.

Um comentário:

  1. Sara, primeiro me desculpa pois, só agora, travei conhecimento desta postagem. Entretanto já havia lido ela no Caderno Pensar e participei de seu bate papo na Biblioteca Pública. Ilustre escritora, a família TATAGIBA parabeniza e agradece a você, tão novinha, tão meiga, que nasceu dois anos depois da morte de meu irmão, que nós tratávamos por Luiz. Obrigado por marcar, várias vezes, o nome TATAGIBA em seu texto. Faremos do bom e do melhor para não decepcioná-la. Obrigado, mestra.

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