Fabrício Fernandes é autor do livro-reportagem Rosa Helena – Para além da folha de vento (Editora da Universidade Federal do Espírito Santo - Edufes). Também produziu a noveleta O Concurso – A caminho-do-azul-cintilante-majestoso (Editora Encanto das Letras), publicada inicialmente numa coluna literária do Jornal de Brasília. Hoje, escreve o primeiro romance, intitulado provisoriamente O eu sem lastros. Além disso, disponibiliza o livro de microcontos Quitinete (independente) pelo blog http://oimpulso.wordpress.com. Formou-se em Jornalismo pela Faesa. Como jornalista, atuou em assessorias de comunicação governamental e empresarial. Também trabalhou como repórter e subeditor do Jornal de Brasília por três anos. Confira, abaixo, o conto “O Garoto e a borboleta”:
O GAROTO E A BORBOLETA
A Rafael P.,
e para se esvaziar.
Passei a noite sofrendo os impactos da metamorfose. Abandonei o meu estado de larva para transformar-me numa crisálida, depois numa borboleta. Ao amanhecer sentia pouco ou quase nada as pernas, mas minhas asas estavam cobertas de escamas e com uma cor amarelada; estavam fortes e vigorosas o suficiente para entrar no quarto do garoto e acompanhar seus passos naquele dia. Ainda sabia pouco ou quase nada dele, seu nome, se havia beijado alguma garota, ou se vivia colado em algum amigo por quem sentira mais que curiosidade. Naquela manhã fui levada por um vento seco e esfumaçado; vento sujo e repleto de fuligem proveniente das queimadas que haviam na cidade dele. Eu ainda não sabia o nome dela, pois havia acabado de acordar para tudo. Sei que era uma cidade cercada de uma mata seca e retorcida, e que naquela época do ano quase toda a cidade estava rodeada de pequenos e grandes incêndios (Brasília/DF). Naquele dia, o segui secretamente.
Flagrei o garoto entrando no hipermercado para comprar mantimentos. Ele retornou a pé de volta para casa onde morava com a mãe. Soube ainda que ele não conhecera o pai. Em seu registro de nascimento está escrito o nome de sua mãe e, no espaço onde era para haver o nome do pai, há apenas pontilhados, bem assim, bem assim...............................................................................................................................). Mas isso aparentemente não fazia a menor diferença para ele. Até ali, e pra mim.
No quarto dele, vi que dezenas de pôsteres do Maruto Mangás colados na parede, fotos dos capítulos de Neji e Hinata, da batalha com risco de morte, e do clã Hyuuga (figuras que convivem diariamente num jogo virtual, cujo nome desconheço). Ali, quieta na parede, bem acima do guarda roupa, quase escondida por detrás de edredons e malas de viagem, vi quando ele caminhou à janela do apartamento, e avistou quatro andaimes à construção de um gigantesco estádio. O pano de fundo da imagem era que o cinzento do céu e uma nuvem de poeira tinham se acumulado sobre aquelas torres de concreto. Depois, quando ele deixou a casa, seguiu até o estádio em obras. Vi quando adentrou na construção pela abertura que havia nos tapumes. Fomos passando por pilares de sustentação do concreto erguidos sem ter consciência do impacto causado no solo pelas fundações, das forças a que o solo resiste. Nem eu nem ele.
Estávamos agora num corredor largo entre blocos e toneladas de concreto. Em seguida um avião sobrevoou rente aos pilares. Assustei-me com o barulho. Ele não. O garoto manteve os olhos abertos, ergueu a cabeça para o alto e olhou para o gigantesco pedaço de ferro branco cheio de gente dentro. Viu o avião passar bem lentamente e rente ao estádio inacabado, levantando poeira branca e fazendo muito estrondo. Era um barulho grave e agudo ao mesmo tempo. Um barulho que ressoava e se acumulava dentro dos pilares. Vi que ele parou a ficar a olhar aquela coisa cheia de gente dentro voando sobre nossas cabeças. Pude escutar o pensamento dele: e se um dia abandonasse minha mãe? Será que ela me perdoaria? penso em procurar meu pai. Não o conheço. Ele será como?
O garoto começou a adentrar num largo corredor entre duas enormes paredes de cimento, por onde se acessava escadas que levavam a um seco subterrâneo. Sem visão externa, num escuro poeirento, o garoto tirou os sapatos, desceu as calças e fica nu. Lentamente, ele foi se movimentando por entre as pernas, os braços esticados para baixo; os pêlos pubianos do garoto reluziam à luz do poente; bicos do peito engelhados eram tocados pelo vento frio. Ele se enrijeceu até conseguir se esvaziar como queria, expulsando seu sêmen que respingou cintilantemente sobre pedaços de pedra empoeirada e espalhada pelo chão do corredor. Ele gritou. Eu gritei com ele.
Vi quando começou a esmurrar as paredes de cimento, batia com os punhas cerrados, as pontas de dedos afundando a palma das mãos: meu pai, quero conhecer meu pai, olhar pra cara dele, saber quem ele é, o que faz; eu não podia ajuda-lo ali sozinho; como foi sua juventude, meu pai, quero conhecê-lo? não podia me livrar de minhas asas, ganhar pernas e tira-lo dali, antes que ele abandonasse a mãe; meu pai... qual será a cor dos dentes dele? o seu cheiro, meu pai! eu sacudia as asas, agitava-as...; meu pai? o nome dele, qual seria o nome dele, não teria nome nenhum? por que minha mãe não fala, porra!, porque não quer contar sobre ele? acho que estou conseguindo pernas...
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