Hoje, 09 de abril, Chorão faria 43 anos. Como homenagem, segue um artigo especial que o cantor e compositor Zeca Baleiro escreveu para o GLOBO
Uma das coisas que mais
abomino no circo de horrores do showbiz é a capacidade que algumas pessoas têm,
artistas ou não, de capitalizarem a desgraça (ou pior, a morte) alheia. “Fulano
morreu? Hmmm, vou preparar um tweet bem bacana!...” Ou: “Vou ensaiar um
depoimento bem lacrimoso pra dar à TV ou ao jornal”...
Quando Chorão morreu, fui procurado por
jornais e TVs para dar o meu depoimento lacrimoso, afinal todos (ou quase
todos) sabiam da nossa proximidade. Mas evitei. Não estou no time dos que
capitalizam a desgraça alheia, como há aos montes por aí. Nem havia risco de eu
ser confundido com tal espécie. Mas às vezes é preciso, de um modo quase
militante, deixar bem claras as diferenças entre você e o mundo, por mais
presunçosa que esta afirmação possa parecer. “Não basta que a mulher de César
seja honesta, ela precisa parecer honesta”, diz sábio ditado popular.
Sim, éramos próximos. E sim, poderia dizer
que fomos amigos, mesmo pertencendo a mundos tão distantes, e mesmo nos vendo
tão poucas vezes na vida. Mas o sentido de “amizade” é algo que independe da
frequência com que as pessoas se veem, penso eu. Tem mais a ver talvez com uma
certa “afinidade”, palavra de sentido vago, mas que talvez explique a empatia
que sempre senti com Alexandre, digo, Chorão. Ele gostava de dizer: “Você foi o
primeiro cara da MPB a dar moral pra gente”. E eu retrucava: “Não sou MPB, pô,
sou rock também. Só que de outra espécie”. Ele ria.
Desde que gravei “Proibida pra mim”, há 12
anos, e dei seguidos depoimentos elogiando a banda e suas sacadas poéticas,
estivemos juntos em várias ocasiões. Primeiro pra uma matéria do “Vídeo Show”,
mostrando o encontro inusitado entre uma banda de hard rock e um compositor da
“MPB” (“deixe que digam, que pensem, que falem”...). Depois em várias canjas
por festivais Brasil afora — “Planeta Atlântida” em Floripa, “Lupaluna” em
Curitiba (na última vez em que canjeei com a banda, na edição de 2012 deste
festival, subi totalmente borracho no palco e por pouco não dei vexame —
esqueci letra e tudo o mais. Quando saí, Chorão falou: “Vocês acham que a turma
do rock é louca, né? Mas essa galera da MPB é muito mais, olha aí...”).
Quando CBJ lançou o disco “Nadando com os
tubarões”, em 2000, fui convocado a escrever o release de imprensa. Fiquei
lisonjeado. Era fã da banda desde o primeiro CD. Tinha o que dizer. E disse.
Que a banda era original nas composições, e que Chorão era dotado de uma verve
muito especial, de poeta da rua, malandro, debochado, mas também romântico,
sedutor, lírico — por que não? Nesse disco, o terceiro da trupe, me chamaram a
atenção — além da mistura boa e esperta de hardcore, rap, ska, reggae e até
pitadas de bossa, e do espírito sempre gaiato e irreverente do grupo, como pede
o bom rock’n’roll — alguns achados nas letras, como: “Eu nunca paguei pra
sonhar” (em “Pra mais tarde fazermos a cabeça”); ou
“Todo mundo para para ver o
caos... O batuque e o massacre, o batuque e o crack, o batuque e a bola, o
pobre sempre é a bola” (em “Ouviu se falar”). Novos discos vieram, e com a
maturidade da banda, vieram também canções que podem já ser consideradas
clássicos dos anos 2000 — “Dias de luta, dias de glória”, “Papo reto”, “Céu
azul” e “Só os loucos sabem”, entre tantas.
Ah, não podia esquecer um detalhe pra lá
de importante. Chorão me convidou a tocar “Proibida” na cerimônia do seu
casamento. Justificativa: sua noiva Graziela, musa da canção, preferia a minha
versão, mais delicada, à versão “podreira” da banda. Dizia isso aos risos,
tirando onda de enciumado. Nunca havia tocado em casamento algum, mas... Como
negar um pedido dessa natureza vindo do homem? Por trás do personagem
rock’n’roll, genuíno até a medula, havia também um cara doce e amoroso,
camarada e gentil com os amigos.
“Magrelo, vou gravar um DVD dos 15 anos da
banda e quero você lá. Vamos fazer um mix do seu arranjo com o nosso em
‘Proibida’, topa?”. “Claro, velho, tô dentro”. E lá fui eu pra Santos. Incrível
dividir o palco com ele e a banda (em formação quase original, faltando apenas
o Pelado na batera). Que vigor, que punch, que porrada! Não me lembro de ter
ouvido antes uma banda brazuca com performance tão impressionante e volume tão
ensurdecedor — deliciosamente ensurdecedor.
Noite memorável, quase dez mil pessoas
vibrando alucinadas com o show (subi ao palco às 5h da manhã), cantando em coro
com a banda, repetindo os bordões que o seu controverso e carismático frontman
ordenava. Sim, digo “ordenava” porque a plateia comia na sua mão, outro talento
indiscutível do cara... E sim, digo “carismático”, porque, por mais que não se
saiba definir claramente o que é uma pessoa carismática, sabemos identificar
quando vemos uma.
Depois retribuí o convite chamando-o para
gravar “O desejo” no meu “O disco do ano”, lançado ano passado. A música é um
rap de refrão melódico, cujo personagem é um sujeito angustiado, dividido entre
o desejo insaciável de consumir e a consciência da morte dos sonhos (em suma,
esse cara somos nós). Chorão arrasou, com seu jeito muito particular de
“rimar”. Mandou um improviso tão bom que não tive como não incluí-lo na faixa
já quilométrica.
Na ocasião, junto com o seu filho
Alexandre, no estúdio Mega, em Higienópolis, ele me contou que estava entrando
numa nova fase, ouvindo mais música brasileira — Jorge Benjor, Gil, Tim Maia...
Também me mostrou, ao violão, três pedaços de canções à espera de um desfecho,
que gravei no meu iPhone. Finalizei uma delas e a batizei por conta própria de
“Um dia você vai”, um rock-balada sentimental e doído. Gravei uma versão de
violão e voz em janeiro deste ano e desejava enviá-la pro novo parceiro pra ele
dar o seu parecer, como faço sempre que componho a quatro mãos. Infelizmente
não fui ágil o suficiente. Pudera! Jamais podia imaginar que aconteceria o que
aconteceu. Na parte da letra escrita por ele, ele diz: “Reaprendendo a viver
com as coisas /Sem olhar pra trás pela primeira vez”. É vero. Chorão estava
tentando reaprender a viver. Pena que não houve tempo. Sim, o destino roteirista
é às vezes implacável.
(Zeca Baleiro)
(Zeca Baleiro)
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