Correspondências entre Jack Kerouac e
Allen Ginsberg trazem as histórias e os bastidores da geração beat
A marca fundamental da literatura beat
talvez não seja a vida desregrada, o fascínio pelos subterrâneos ou mesmo a
tentativa de fazer a língua escrita soar como se fosse jazz bebop. Talvez o que
nos faz ainda hoje tratá-la justamente por “geração” seja a estreita
camaradagem e cumplicidade entre os principais envolvidos. É essa intimidade
entre dois protagonistas que faz despertar o interesse por As Cartas de Jack Kerouac & Allen
Ginsberg (L&PM Editores) calhamaço que o leitor
brasileiro agora tem ao seu dispor.
Trata-se de um longo compêndio para além
de 500 páginas, com mais de 10 anos de cartas entre Kerouac e Ginsberg, dos
meados da década de 1940 ao início da década de 1960. É a fase definitiva e
definidora da essência beat. Foi quando se conheceram, viajaram os Estados
Unidos de ponta a ponta, caíram na vida e começaram a escrever as obras que ajudariam
a nortear boa parte da literatura norte-americana – e ocidental – a ser
produzida nas décadas seguintes. O período das cartas corresponde à saída
desses autores do anonimato, às suas pioneiras publicações, às primeiras
resenhas feitas pela imprensa e ao início do desbunde mundial que seria chamado
de contracultura.
As Cartas de Jack Kerouac & Allen
Ginsberg foi colhido, organizado e editado por dois peritos na
geração beat: David Stanford, editor sênior da gigante editorial Viking
Penguin, e Bill Morgan, antigo protegido de Ginsberg que também era uma espécie
de bibliógrafo pessoal e arquivista particular. As cartas, portanto, ficaram em poder de Morgan após a
morte do poeta.
Kerouac (1922 – 1969) e Ginsberg (1926 –
1997) se conheceram no início de 1944 nos arredores da Universidade de
Columbia, em Nova York. A
vastidão da América ainda era desconhecida por Kerouac quando ele iniciou sua
troca de cartas com Ginsberg. Mas o prezado leitor de On the Road (1957),
de Kerouac, por conta dessas mil relações entre vida pessoal e obra literária,
já se sente imediatamente à vontade por aqui, totalmente enturmado na companhia
daqueles dois.
Nas cartas, os aspirantes a escritor
trocam dicas de leitura (Gógol, Céline, Thomas Wolf) e admitem as inseguranças
quanto ao ato de escrever. Mas parecem tratar as próprias cartas como um campo
de experimentação poética. Neal Cassady, o bom malandro, maconheiro, bígamo e puxador de carros, seria
uma terceira ponta desse triângulo sensorial. Era um camarada que não sabia
escrever duas frases que fizessem sentido, mas trazia em si o aprendizado das
ruas. Cada chegada dele a Nova York era ansiosamente aguardada e festejada por
antecipação. E William Burroughs é visto como o amigo doidão. Além de ter
viajado mais do que os outros, é o que pareceria estar mais pronto para
publicar um livro. Tinha viajado pela Amazônia peruana só para tomar
ayahuasca (bebida alucinógena) e de lá ele trocou com Ginsberg longas cartas
sobre a experiência.
À sombra da fama
Com o poema Uivo (1956) liberado
e o livro On the Road na
ponta da lista de mais vendidos do New York Times, Ginsberg comentava com
Kerouac sobre as tão belas propostas que passou a receber de megaeditoras
prometendo relançar Uivo em maiores tiragens. Já Kerouac nunca entenderia a
idolatria que se formou a sua volta. Nestas cartas, ele se mostra primeiro
espantado, depois relativamente fascinado e por fim francamente incomodado com
o fato de On the Road ter se
tornado aquilo que se tornou. Kerouac desprezava os hippies e não queria ser
apontado como precursor de nada que pudesse ser relacionado a eles. Allen
Ginsberg, por outro lado, parecia adorar ser idolatrado. Andava de moto com Bob
Dylan, viajava com os Beatles, pingava ácido em Haight-Ashbury, em São Francisco, e
pregava as virtudes do budismo, as benesses da meditação transcendental.
Dessas diferenças, percebe-se que Kerouac
e Ginsberg, talvez por responderem ao sucesso e à condição de celebridade de
maneira tão distinta, tornaram-se personalidades praticamente opostas. Mas,
mesmo assim, mantiveram estreita a amizade.
(Bernardo Scartezini, Especial | Correio Braziliense – Da Press – Jornal Zero Hora – 10/04/2010)
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