quarta-feira, 10 de abril de 2013

GERAÇÃO BEAT. CARTAS NA RUA.

Correspondências entre Jack Kerouac e Allen Ginsberg trazem as histórias e os bastidores da geração beat

A marca fundamental da literatura beat talvez não seja a vida desregrada, o fascínio pelos subterrâneos ou mesmo a tentativa de fazer a língua escrita soar como se fosse jazz bebop. Talvez o que nos faz ainda hoje tratá-la justamente por “geração” seja a estreita camaradagem e cumplicidade entre os principais envolvidos. É essa intimidade entre dois protagonistas que faz despertar o interesse por As Cartas de Jack Kerouac & Allen Ginsberg (L&PM Editores) calhamaço que o leitor brasileiro agora tem ao seu dispor.

Trata-se de um longo compêndio para além de 500 páginas, com mais de 10 anos de cartas entre Kerouac e Ginsberg, dos meados da década de 1940 ao início da década de 1960. É a fase definitiva e definidora da essência beat. Foi quando se conheceram, viajaram os Estados Unidos de ponta a ponta, caíram na vida e começaram a escrever as obras que ajudariam a nortear boa parte da literatura norte-americana – e ocidental – a ser produzida nas décadas seguintes. O período das cartas corresponde à saída desses autores do anonimato, às suas pioneiras publicações, às primeiras resenhas feitas pela imprensa e ao início do desbunde mundial que seria chamado de contracultura.

As Cartas de Jack Kerouac & Allen Ginsberg foi colhido, organizado e editado por dois peritos na geração beat: David Stanford, editor sênior da gigante editorial Viking Penguin, e Bill Morgan, antigo protegido de Ginsberg que também era uma espécie de bibliógrafo pessoal e arquivista particular. As cartas, portanto, ficaram em poder de Morgan após a morte do poeta.
Kerouac (1922 – 1969) e Ginsberg (1926 – 1997) se conheceram no início de 1944 nos arredores da Universidade de Columbia, em Nova York. A vastidão da América ainda era desconhecida por Kerouac quando ele iniciou sua troca de cartas com Ginsberg. Mas o prezado leitor de On the Road (1957), de Kerouac, por conta dessas mil relações entre vida pessoal e obra literária, já se sente imediatamente à vontade por aqui, totalmente enturmado na companhia daqueles dois.

Nas cartas, os aspirantes a escritor trocam dicas de leitura (Gógol, Céline, Thomas Wolf) e admitem as inseguranças quanto ao ato de escrever. Mas parecem tratar as próprias cartas como um campo de experimentação poética. Neal Cassady, o bom malandro, maconheiro, bígamo e puxador de carros, seria uma terceira ponta desse triângulo sensorial. Era um camarada que não sabia escrever duas frases que fizessem sentido, mas trazia em si o aprendizado das ruas. Cada chegada dele a Nova York era ansiosamente aguardada e festejada por antecipação. E William Burroughs é visto como o amigo doidão. Além de ter viajado mais do que os outros, é o que pareceria estar mais pronto para publicar um livro. Tinha viajado pela Amazônia peruana só para tomar ayahuasca (bebida alucinógena) e de lá ele trocou com Ginsberg longas cartas sobre a experiência.

À sombra da fama

Com o poema Uivo (1956) liberado e o livro On the Road na ponta da lista de mais vendidos do New York Times, Ginsberg comentava com Kerouac sobre as tão belas propostas que passou a receber de megaeditoras prometendo relançar Uivo em maiores tiragens. Já Kerouac nunca entenderia a idolatria que se formou a sua volta. Nestas cartas, ele se mostra primeiro espantado, depois relativamente fascinado e por fim francamente incomodado com o fato de On the Road ter se tornado aquilo que se tornou. Kerouac desprezava os hippies e não queria ser apontado como precursor de nada que pudesse ser relacionado a eles. Allen Ginsberg, por outro lado, parecia adorar ser idolatrado. Andava de moto com Bob Dylan, viajava com os Beatles, pingava ácido em Haight-Ashbury, em São Francisco, e pregava as virtudes do budismo, as benesses da meditação transcendental.

Dessas diferenças, percebe-se que Kerouac e Ginsberg, talvez por responderem ao sucesso e à condição de celebridade de maneira tão distinta, tornaram-se personalidades praticamente opostas. Mas, mesmo assim, mantiveram estreita a amizade.

(Bernardo Scartezini, Especial | Correio Braziliense – Da Press – Jornal Zero Hora – 10/04/2010)

Nenhum comentário:

Postar um comentário