Sorrisos que escravizam e prostituem
O príncipe Grigorij Alexandrovitch
Potemkin (1739-1791) foi um marechal-de-campo russo, além de conselheiro e
amante da csarina Catarina II (1729-1796). Durante boa parte de sua vida,
envolveu-se com um projeto de colonização das selvagens estepes do sul da
Ucrânia. Era considerado um sonhador e tornou-se conhecido como o fundador de
cidades como Kherson, Nikolaev, Sebastopol.
Conta a lenda que Catarina II, em 1787, resolveu
realizar uma longa viagem pela Ucrânia com o objetivo de inspecionar os
povoamentos supostamente levados a cabo por seu amante, o príncipe Potemkin,
embora, daí o motivo da expressão inicial, ainda que invertida, deste
parágrafo, “não conta a lenda”, quisesse mesmo é inspecionar o próprio
Potemkin, certamente o único motivo que a levaria realizar uma viagem tão longa
e demorada: o distante corpo do amante e não o corpo inóspito de longínquas
terras.
Como seus projetos mirabolantes de
colonização estavam ainda numa situação deplorável, o engenhoso príncipe,
querendo impressionar Catarina II, mandou construir cenários de povoados,
conhecidos como “aldeias de Potemkin”. Considerando que Catarina II não fosse
tão idiota a ponto de acreditar em tais subterfúgios (teatros de povoados ao
invés de povoados de verdade), o que ocorreu de fato foi a simples constatação
de que Catarina II preferiu fazer vistas grossas, fingindo que acreditava,
agradando assim seu dileto amante, do que denunciar e punir implacavelmente a
farsa.
Princípio de esperança
Em 1898, um navio de guerra da frota do
mar negro da Rússia (talvez porque tivesse uma couraça inspirada no couraçado
britânico HMS Majestic) foi inaugurado com o nome de encouraçado Potemkin, uma
homenagem ao não menos encouraçado príncipe russo construtor de não menos
encouraçadas cidades cenográficas à moda majestic
ou csarina.
Em 28 de junho de 1905, por sua vez, o
navio de guerra russo encouraçado Potemkin foi o cenário real de uma rebelião
de marinheiros que se opuseram ao mandonismo de seus oficiais. Talvez motivados
pela revolução popular que dominava todo continente russo no mesmo período
histórico, 1905, os marinheiros do encouraçado Potemkin, de motivação a
motivação, iriam inspirar e motivar o que tinha de mais instigante na Revolução
Russa de 1917, seu devir revolucionário, a saber: voltar-se contra as formas
oficiais de opressão que produzem encouraçados despotismos a fim de abrir as
janelas do tempo histórico à produção de povoamentos fundados na igualdade real,
e não encouraçada, de todos, entre todos, fora de qualquer projeto megalômano
de cidades de fachada, com seus oficiais cães de guarda prontos a vigiar e a
punir qualquer um que queira ou deseje povoar as fachadas das civilizações,
enchendo-as de povos, de liberdades, de justiças, de porvires, no coração do
vivo presente histórico, marcado, quando revolucionário, de inspiração a
inspiração, por coletivas respirações.
Em 1925, sempre de motivação para
motivação, de presente vivo para presente vivo ou de revolução a revolução, o
cineasta russo, Serguei Eisenstein, dá a conhecer ao público o seu não menos
revolucionário filme, O encouraçado
Potemkin, inspirado precisamente na revolta dos marinheiros russos
de 1905 e cujo principal mérito, inclusive singularmente inscrito em sua
técnica de montagem, foi o de ter produzido um experimental filme sobre as
sempre experimentais revoluções populares, sempre solidárias e motivadas por
outras, como um fio de justiça que puxa outro, formando um inacabado e renovável
princípio de esperança, de populares esperanças que se atam a novos atos
nascentes fundados na não menos esperança num mundo sem encouraçadas mentiras
de povoados encenados de Potemkin – os quais sempre são, independentemente da
época histórica, os encouraçados infernos dos povos sem povoados.
A versão Potemkin
Em 1993, o ensaísta alemão, Robert Kurz,
publica O retorno de Potemkin,
obra que apresenta o seguinte argumento:
“O caráter um tanto duvidoso da fama de
Potemkin, contudo, não apaga o fato de que ele fez época com sua invenção.
Sobrevive até hoje como exemplo secreto para modernos ideólogos, ditadores,
políticos democratas e, por último, mas não menos importante, repartições de
estatísticas. Mesmo que não se tenda a conceber a modernidade como uma grande
aldeia de Potemkin, é forçoso que a invenção potemkiniana vem sobrevivendo
através dos último dois séculos da história da modernização como uma espécie de
modelo ou esboço para as interpretações oficiais” (Kurz, 1993, p.9-10).
Após a bárbara e genocida invasão do
Iraque, liderada pelo encouraçado regime ditatorial-democrático americano, e
como parte de um não menos encouraçado plano de reconstrução do país
invadido,em 2009, o Departamento de Estado americano gastou uma fortuna para
construir, no leste de Iraque, uma fábrica de processamento de frangos com o
“magnânimo” objetivo de distribuí-los, devidamente cortados e embalados, para
os destruídos supermercados do Iraque invadido. A opulenta fábrica, como um
cenário de um filme hollywoodiano, nunca funcionou de verdade, tendo sido
ironicamente apelidada de Fábrica de Frangos Potemkin pelos encouraçados
generais americanos.
A americana Fábrica de Francos Potemkin
tornou-se uma experiência piloto do lado Potemkin humanitário da guerra
humanitária, tendo sido devidamente usada como Potemkin cenário de propaganda
da reconstrução humanitária do Iraque, após o holocausto da Potemkin
humanitária invasão. Jornalistas do mundo inteiro foram convidados a
conhecê-la, transmitindo a boa nova pelos quatro cantos do planeta, fazendo
valer a máxima de que o que importa é a versão Potemkin, versão de versão, como
um editorial Potemkin, sobre um povo tomado por irradiações de proteínas, de
fósforos brancos e plutônios empobrecidos, em frangalhos, comendo editados
frangos Potemkin no compasso com as edições midiáticas Potemkins.
Rebeliões e revoluções
Considerando que o argumento de Robert
Kurz, em seu livro O retorno de Potemkin,
tem a tendência de generalizar demais, por defender que o mercado capitalista
mundial é o verdadeiro encouraçado Potemkin do sistema-mundo, penso, contra
essa generalização, que produz confusão e desencanto, que, para sermos
consequentes, é preciso dizer com todas as letras o seguinte: na modernidade, o
verdadeiro cenário Potemkin, é o povoado encenado e encenando-se a que damos o
nome (encouraçado) de Ocidente.
O Ocidente é o encouraçado Potemkin cujo
cenário fantasioso inscreve em sua fachada os seguintes enfeites discursivos,
além de outros: 1) somos civilizados, os outros não; 2) somos democráticos, os
outros não; 3) somos humanistas, os outros não; 4) somos inteligentes, os
outros não; 5) somos livres, os outros não; 6) somos justos, os outros não; 7)
somos bonitos, os outros não; 8) somos educados, os outros não; 9) somos sutis
e plásticos, os outros não; 10) somos semi-deuses, além do bem e do mal, nem
opressores e nem oprimidos; os outros são infra-humanos, nem inteiramente
humanos e nem inteiramente animais, podendo ser o pior de ambos; 11) somos os
contemporâneos e os outros os anacrônicos; 12) somos a liberdade de expressão,
os outros não.
O encouraçado Potemkin da invenção
ocidental, sua presunçosa fachada, é o principal obstáculo para a construção de
um mundo habitável por justiças sem fim, tendo em vista as pessoas de carne e
osso, razão pela qual é o maior inimigo da vida na Terra, pois sempre esgrime
as mesmas armas a fim de se opor às necessidades de transformar, para melhor, o
mundo, a saber: 1) O Ocidente, principalmente a sua versão estadunidense e
europeia, é o cenário oficial à priori de uma humanidade plenamente realizável,
onde o homem novo se realiza sem cessar, razão pela qual o máximo que podemos
fazer, os não plenamente ocidentais, é repeti-los, os divinos e rigorosos
ocidentais; 2) o Ocidente é a demanda realizada da luta por um mundo justo,
democrático e livre, se considerarmos, por exemplo, a Revolução Francesa, a
independência americana, maio de 68, entre outros acontecimentos, claro que
ignorando ou simplesmente apagando do mapa das representações tudo que outras
insubmissões humanas protagonizou, inclusive a Revolução Russa de 1905 e 1917,
mas nunca apenas, pela evidente razão de que existiu, existe e existirá, de
motivação para motivação, uma sem fim de outras rebeliões e revoluções, como a
que resultou na criação do Zumbi de Palmares e na Independência de Haiti,
eventos tão importantes quanto os que ocorrerem no interior do Ocidente
oficial, razão pela qual, porque não ocorreram no encouraçado Ocidente, nos são
apresentados como periféricos e de relevância secundária para a humanidade.
O fim da alteridade
Tendo em vista a conhecida tese de Francis
Fukuyama (1952), a de que, com o capitalismo neoliberal, chegamos finalmente ao
fim hegeliano da História, o Ocidente, desde pelo menos à Revolução Burguesa de
1789, considera-se o próprio fim da história, no duplo sentido de ser o seu
ponto máximo e de ser o fim da história, quer dizer, o objetivo supostamente
irrecusável de todos os povos que ainda não alcançaram a evolução terminada do
verdadeiro homem ocidental.
A questão de base, portanto, é a da
oficialidade: o Ocidente é o fim oficial da História, sendo a própria História
oficial, em todos os âmbitos da vida humana, razão suficiente, tendo como
referência o ponto de vista dos encouraçados oficiais do Ocidente, para
desqualificarmos, recusarmos e inferiorizamos todas e quaisquer perspectivas
sociais, culturais e político-econômicas que não têm como evidente, porque
rigoroso, objetivo o fim oficial da História, representado pelo magnânimo
Ocidente.
É assim que o fim oficial da História,
encarnado metafisicamente na figura exotérica do Ocidente, inventou e continua
inventando alteridades, pela razão simples de que será alteridade ou tanto mais
alteridade todo humano que não for a encarnação ou o rosto encouraçado da realização
humana apresentada e representada pelo encouraçado fim da História ocidental.
Eis porque, sob esse oficial e encouraçado ponto de vista, o fim de toda
alteridade, as de classe (logo as não burguesas, ocidentais), as étnicas (logo
as não brancas, ocidentais), as de gênero (logo as não heterossexuais e
masculinas, ocidentais), é um e apenas um só: tornar-ser ocidentais, alcançando
esse fim.
Fórmulas mágicas
No fundo e no raso, toda oficial política
de inclusão, seja educacional, seja econômica, seja cultural, seja étnica, seja
de gênero, está implicada com este desafio: incluir os excluídos, vale dizer,
as alteridades não oficiais, a fim e no fim do encouraçado Ocidente, embora
possamos dizer que, com todas as letras, para as alteridades, o fim do Ocidente
é não ter fim; é buscá-lo sem cessar e nunca alcançá-lo, porque, não sendo
oficialmente ocidental, as alteridades nunca poderão se tornar plenamente o fim
do Ocidente.
Como exemplo, consideremos as políticas
implementadas pelo Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Para a
periferia do sistema-mundo, esse poço sem fundo não plenamente ocidental, as
diretrizes impostas pelo FMI e BM são inspiradas em encouraçadas premissas
exotéricas cuja palavra de ordem oficial é a seguinte: os países não plenamente
ocidentais só conseguirão sair da condição inferior de pobres e endividados
quando, fielmente, conseguirem cumprir uma cartilha encouraçada de exigências
baseadas na não menos encouraçada metafísica dos fins econômicos e sociais do
centro oficial do Ocidente, embora, diga-se de passagem, faça parte do roteiro
a impossibilidade de alcançar esse inalcançável fim oficial.
Considerem, sob esse ponto de vista, a
situação especialmente dramática dos países não plenamente ocidentais,
pertencentes à União Europeia, como Portugal, Espanha, Itália, Grécia, Chipre,
entre outros. Para esses países não oficialmente ocidentais, a única saída para
se tornarem legítimos e encouraçados europeus, está inevitavelmente
predeterminada pelas encouraçadas exigências impostas pela troika, oficialmente
representada pelo Banco Central Europeu, a União Europeia e o FMI. É
precisamente por isso (e a América Latina esteve no miolo deste inferno na
década de 90) que a receita para os que não conseguem se tornar plenamente europeus
(e os não oficialmente europeus nunca conseguirão) é sempre a mesma: mais outro
oficial pacote de receitas ou mágicas fórmulas de como se tornar um encouraçado
Ocidental.
A liberdade de expressão do
Ocidente
Por todo lado o que vemos é este dogma: a
defesa intransigente da oficialidade Ocidental, acusando a todos não
oficialmente ocidentais de não sê-lo porque não conseguem cumprir os exotéricos
roteiros do encouraçado mundo ocidental. É assim, que, na academia, qualquer
pesquisa que não estiver orientada pelos parâmetros oficiais dos magnânimos
fins do Ocidente, será acusada de sem rigor, de simplista, de anacrônica, de
equivocada, ingênua e assim por diante. E é aqui que eu acuso, sem hesitar, o
CNPq e a Capes, as duas principais agências de fomento das Universidades
brasileiras, de serem, elas mesmas, duas couraças oficiais do mundo das não
menos encouraçadas pesquisas oficiais do Ocidente, sendo por isso, e nenhum
outro motivo, que ambas as agências costumam recusar, com todo encouraçado
rigor, as pesquisas que não se ajustem aos padrões ou fins estabelecidos pelo
encouraçado Ocidente.
Se, por outro lado, viramos os olhos para
as políticas não orientadas pelos metafísicos fins políticos do Ocidente,
constataremos (claro, aqueles que têm olhos não totalmente eurocêntricos para
ver) que o Potemkin sistema de bens da civilização ocidental sem hesitar as
acusa de ou terroristas, ou populistas, ou autoritárias ou bárbaras ou
anacrônicas ou tudo isso junto, num encouraçado contexto em que a única saída
para essas não oficiais e não ocidentais políticas é a de se ajustarem aos
inalcançáveis padrões ocidentais, o que significa, bem entendido, precisamente
o fim da política. A mesma lógica toma o campo dos poderes oficias no mundo
todo, do executivo, do legislativo e do judiciário: só serão sérios, legítimos
e verdadeiramente justos se forem uns encourados Potemkins dos exotéricos
mundos dos poderes executivos, legislativos e jurídicos do não menos
encouraçado Ocidente.
Este é também o oficial parâmetro dos
considerados oficiais encouraçados meios de comunicação do mundo todo, afinal:
só serão considerados o reino exotérico da liberdade de expressão se estiverem
orientados pelas encouraçadas exotéricas ideias de liberdade de expressão
preconizadas pelo oficial Ocidente. Do contrário, como ocorre em alguns casos,
por exemplo, na Venezuela (alguns casos, bem entendido, porque mais de 80% do
espectro radioelétrico venezuelano são encouraçados, oligárquicos, oficiais), o
oficial veredicto será o seguinte: se recusam a oficialidade encouraçada da
exotérica liberdade de expressão do Ocidente, serão implacavelmente condenados
pelo crime imperdoável de atentado contra a metafísica oligárquica ideia
privada de liberdade de expressão do encouraçado Ocidente.
Sorrio para a foto
Além desse oficial desígnio exotérico, as
encouraçadas mídias do mundo cumprem um importante e não menos encouraçado e
estratégico destino Potemkin, civilizatório, a saber: serem elas mesmas, por
elas mesmas, os meios globais de produção da oficialidade, cujo principal
objetivo encouraçado é o de realizar incessantes propagandas confeitadas do
encourado Potemkin da verdadeira troika do oficial Ocidente, a saber: seus
oficiais Estados policialescos – armados até os dentes –, suas oficiais
corporações (incluindo as fundamentalmente encouraçadas, como as do sistema
financeiro) e suas oficiais religiões, divididas, num mesmo encouraçado e
confeitado bolo, entre as cristãs (católica e protestante) e o ultraoficial
judaísmo.
Este é, pois, o lugar estratégico dos oficiais
meios de comunicação do mundo, na atualidade: serem o literalmente encouraçado
epicentro editorial do não menos encouraçado Potemkin planetário, da verdadeira
encouraçada troika ocidental, encarnada, pelo encouraçado tridente da
metafísica de seus oficiais Estados militares, de seus oficiais mundos
corporativos e de suas oficiais religiões, o que equivale, em conjunto, ao que
Frantz Fanon, em Os condenados da Terra
(1961), chamou de sistemas de bens do colonizador: um encouraçado Cavalo de
Troia que herdamos como um magnânimo presente civilizatório, o único possível,
sendo simplesmente um verdadeiro presente de grego a nos saquear do lado de
dentro quanto mais civilizados nos tornamos ou desejamos ser – saqueadores.
No Brasil, é preciso dizê-lo com todas as
letras, a TV Globo é o nosso Cavalo de Troia a serviço da troika das
oficialidades ocidentais. O chamado padrão globo de qualidade não passa de um
encouraçado Potemkin publicitário dos sistemas de bens oficiais da bélica e
genocida expansão colonizadora do Ocidente – sua religião midiática. Aparecer
na telinha global equivale, sob esse ponto de vista, a estas palavras de ordem:
sou civilizado, sou a encarnação dos sistemas de bens do encouraçado Ocidente,
sou o rosto da civilidade, sou oficialmente o fim da história, o escolhido a
compor o sistema de disfarce do encouraçado Ocidente; sou o desejo
civilizatório encarnado, o objeto de todos os oficiais desejos, em oposição ao
fracassado limbo lixo da História (a não encouraçada humanidade inteira); sou o
mais talentoso, o mais inteligente, o mais inventivo, o mais bonito, o
verdadeiro herdeiro dos sistemas de bens do encouraçado Ocidente – por isso
sorrio para a foto, confiante, com minha cara ungida pelos deuses. Sou, enfim,
(como um oficial Faustão, Ana Maria Braga, Fátima Bernardes, ator tal, atriz
tal, Jô Soares) um Cavalo de Troia ambulante dentro de sua casa. Por isso
sorrio simpático, civilizado, para que não percebam o que virá após mim e mesmo
através de mim, comigo, dentro de meu encouraçado Potemkin global: roubo,
pilhagem, pobreza, humilhação, barbárie, sofrimento, servidão por dívidas
econômicas, subjetivas, civilizacionais.
A escravidão eterna
Claro que, para evitar este bombástico
publicitário Cavalo de Troia, a saída é simples: trocar de canal fora do
Ocidente global (onde?) ou desligar a televisão, embora prefira o desafio de
fazer o que estou fazendo agora: procurar mostrar como funciona a Globo
Potemkin das oficialidades ocidentais, sabendo que o objetivo maior é este:
desligar o encouraçado Ocidente, desinflá-lo de seu fim na História, como
condição fundamental para repovoarmos o mundo de novos atos nascentes, fora das
oficialidades, com suas máscaras civilizadas, que são as máscaras da vergonha,
razão por que, mais que orgulho, por aparecer na TV Globo como o cantor tal, a
atriz tal, o jornalista tal, o animador de auditório tal, o repórter tal, o
entrevistado tal, mais enfim que orgulho por ser o rosto oficial do sucesso
global, aparecer na telinha dos encouraçados Marinhos é motivo de uma profunda
vergonha; é absolutamente vergonhoso – é uma vergonha escandalosa, lamentável.
Eu tenho vergonha por eles – os
encouraçados astros globais; vergonha e asco deles, por eles. Minha vergonha,
no entanto, não é passiva ou intransitiva: vergonha e ponto!Tenho vergonha e
explicito o motivo: vocês são os encouraçados globais e estão aí para esconder
e ao mesmo tempo dissimular o que realmente existe, insiste e persiste fora de
suas couraças: barbárie, barbárie, barbárie; o Ocidente bárbaro, humilhando,
saqueando, impondo inomináveis sofrimentos aos povos do mundo. Vocês não são os
bons, em oposição aos maus; não são os civilizados, em oposição aos bárbaros;
não são os vencedores em oposição aos fracassados e, se quiserem (se é que não
sabem) conhecer a encouraçada empresa de comunicação para a qual vocês
trabalham e pela qual são muito bem remunerados, então basta observarem os
personagens maus das novelas globais, principalmente os dissimulados malvados
das encouraçadas oficiais novelas das 9. Observem bem o comportamento desses
personagens: eles são a enésima parte da perversão ocidental – são, pois, seus
não encouraçados rostos.
Querem, insisto, conhecer a TV Globo fora
de suas couraças? Reparem então nos personagens maus de Salve Jorge. Eles, sim, encarnam a
verdadeira TV Globo: prometem sucesso e riqueza, se apresentam como altruístas,
dissimulam-se, com bondosos sorrisos, apresentam-se como os bonzinhos,
oferecendo civilizadas ajudas aos pobres e desvalidos, embora, fora dos focos
encouraçados, escravizam e prostituem.
Este é, pois, fora do encouraçado Potemkin
oficial, fora e dentro de seu padrão de qualidade, a verdadeira razão de ser da
TV Globo: contribuir ativamente com a escravidão eterna do povo brasileiro, a
fim de que continuemos a ser o prostíbulo do Ocidente.
Tenho vergonha do padrão Globo de
qualidade!
(Texto de Luís Eustáquio Soares)
Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor de Teoria
da Literatura na UFES.
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