domingo, 21 de outubro de 2012

ENTREVISTA TOM ZÉ

Tom Zé é o entrevistado da vez na série de entrevistas do programa Roda Viva que o Outros 300 vem divulgando nos domingos. Confira a segunda parte da entrevista do cantor e compositor mais inusitado da música brasileira:
 
 
 Carlos Calado: Tom Zé, já que o assunto é Tropicalismo, no teu livro - esse livro que você lançou dois anos atrás, o Tropicalista lenta luta -, tem uma conversa muito interessante entre você e o Luiz Tatit, compositor [e também pesquisador de MPB] daqui de São Paulo, onde o Tatit comenta com você que ele achava que o seu projeto não era exatamente o mesmo do Tropicalismo. Que, na verdade, o seu projeto passava mais ou menos ao lado: você tem sempre uma certa preocupação com a sua obra, com a questão dos defeitos, com o feio; você mesmo se declara como um inventor, um fazedor de canções feias, erradas. E o curioso é que aquele debate foi copiado, transcrito no livro e, naquele momento, [no livro] você dizia que ainda não tinha pensado muito bem nisso e que talvez ele tivesse razão. Então, eu queria te perguntar: agora, passado um ano e meio, dois, daquela conversa, hoje em dia você ainda se considera um tropicalista?

Tom Zé: Bom, ó: vamos pintar um quadro bem fácil, bem fácil. Bem fácil, [olhando para Paulo Markun] bem markuniano, bem markuniano. [risos] Eu, lá em Irará, não acertei fazer música. Era um desgraçado! Tem que dizer isso, não é negócio de ficar fazendo nem contando miséria na vista dos outros. Era um [contando nos dedos] desgraçado, envergonhado, humilhado, fodido, lenhado, feminino, mulher, o escambau; eu já nasci com tudo isso, não é? Aí, eu não tinha por onde sair pelo mundo, inventei de fazer música. Mas como quem inventa, por exemplo, de fazer marcenaria - por acaso podia ser marcenaria -; eu ia dar certo em marcenaria ou em música, e justamente porque eu sou ruim. [fazendo gesto para algum dos entrevistadores esperar] Você tinha razão. Então, aí vai; então, lá vou eu; construí...

Júlio Medaglia: Depois explica para gente o que é esse ser ruim, não é? [risos]

Tom Zé: Tudo bem; construí...

Júlio Medaglia: Eu, até agora...

Tom Zé: Muito bem...

Tárik de Souza: É ser anticonvencional, quer dizer, fazer as coisas diferentes do modelo.

Júlio Medaglia: Não fazer o convencional, não fazer o modelo.

Tom Zé: É, não saber fazer o certo, não é? Muito bem, consegui fazer o seguinte. Júlio, era assim. Vejam bem, porque vocês precisam entender o negócio dos fatos. Eu pegava o violão; como eu não podia cantar o contemplativo, eu tinha que jogar o anzol no cognitivo daqueles tabaréus de meus companheiros de sertão e de miséria. Eu, aí, planejei - veja que coisa, eu acho isso genial; acho que eu sou ruim, mas o que eu estou contando... eu sou vaidoso -, eu, aí, planejei que eu ia [levanta-se, dá dois passos e estica o braço, com a palma da mão estendida para a frente, na direção de Paulo Markun] botar um espelho na cara dele para ele não ver mais nada. Como é que eu planejei isso? Eu começava a falar da rua que ele conhece, da pessoa que ele conhece, do prefeito que ele conhece e ele aí não vê que eu não sou cantor, que não sou compositor, que eu não sou nada, ele está obnubliado pelo truque que eu fiz. E foi isso que eu fiz a vida toda. Acabou virando reportagem, por isso que eu faço imprensa cantada. E foi isso que um dia - veja bem como o mundo vai abrindo lugar: isso era chamado de “não-música” -, um dia, em 1960, [o produtor musical] Roberto Santana, meu primo - desculpe, naquela entrevista tem também o [articulista] Arthur Nestrovski [editor da Publifolha], que foi quem fez a superestrutura deste disco novo meu, quem me orientou -, quando ele falou: "Tom Zé..." - [interrompe-se e olha para as mãos] Cadê a bandeira gay que estava aqui na minha mão?

Paulo Markun: Caiu, caiu.

Tom Zé: [pega um trapo colorido no chão e amarra-o novamente no pulso da mão esquerda] "Tom Zé, tem que ter alguma coisa do homem cantando para o homem e de uma mulher cantando para uma mulher, porque o amor não é uma coisa só do problema quando você vê, você, com essa doença sua de só pensar em rabo de mulher [risos] ou em rabo de saia e tal, é..." [interrompendo-se] Tudo bem, tudo bem, mas voltando: aí, em 1960, eu fui cantar no programa Escada para o sucesso, para vocês verem como eu fui vivo - não músico, mas vivo. Aí, o programa chamava Escada para o sucesso [inaudível] “Não adianta eu cantar essas músicas-espelho aqui de Irará, eu tenho que fazer uma com as notícias que saem nos jornais de Salvador” - que é daquela classe média que, naquele tempo, tinha comprado trinta mil televisores; era o princípio da televisão, isso está no ouvido de todo mundo. Aí - Escada para o sucesso -, fiz a música chamada “Rampa para o fracasso” e cantei tudo que todo mundo via no jornal. Cantei tão bem bolado, tão bem - como diriam os nossos alemães da Escola de Viena [de compositores eruditos do início do século XX, cuja principal figura era o músico austríaco Arnold Schönberg, e cuja produção mais conhecida é o serialismo e a música dodecafônica; a escola inspirou, no Brasil, o Movimento Música Viva, que introduziu o dodecafonismo no país, e cujo fundador, o alemão Hans-Joachim Koellreuter (1915-2005), foi professor de vários músicos brasileiros, como Tom Jobim e o próprio Tom Zé], tão bem coordenado, tão bem logralizado, tão bem cartesianizado - que, depois de todo o meu medo durante meses de que aquela música não pudesse ser ouvida ao mesmo tempo e tal, de repente eu cantei e as pessoas começaram a rir na primeira e eu falei: "Deu certo!" [risos] E fui até o fim em uma cantiga de seis minutos. Quando acabou esse dia, eu tinha virado compositor e tinha descoberto que o que eu fazia funcionava com meus amigos em Irará e funcionou em Salvador. E isso deu petróleo - quer dizer, afundou mais a minha escavação -, deu um certo petróleo folclórico e eu fui continuando, errando aqui, errando acolá, tropeçando aqui, cometendo erros de estratégia, quebrando a cara.

Paulo Markun: E o Tropicalismo? E o Tropicalismo, onde é que entra nessa história?

Tom Zé: Sim, aí - desculpe, muito bem, muito bem, o caloso, o corpo caloso... [risos] Sem nenhuma brincadeira, você sabe que eu não faço maldade com ninguém.

Carlos Calado: Hoje você ainda se considera um tropicalista ou você fala que faz...?

Tom Zé: E aí... Agora ele me ajudou e eu perdi: eu já não sabia onde estava a raia que eu estava empinando; ele me ajudou e a raia é o Tropicalismo. Muito bem; aí, um dia, apareceram uns meninos, que eram grandes músicos, grandes gênios e grandes bossanovistas, pura e simplesmente isso - na palavra de dona Gal Costa [cantora ligada ao grupo tropicalista], até -, e, então, conviveram comigo, se influenciaram por aquela confusão formal que eu fazia - confusão, não, por aquele leque de formalidades que eu abria...

Júlio Medaglia: Profusão.

Tom Zé: ...aquela profusão de formalidades, de assuntos, de alternativas novas - justamente porque eu não tinha passado pela romanização e nem pela aristotelização [referência à forte influência grega e romana na cultura ocidental, especificamente a Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.), o filósofo grego que mais influenciou o pensamento ocidental], eu vinha pelo buraco atravessado da Península Ibérica. Eu estava fora do Aristóteles, do homem do espaço, como chama...? Do... do... tudo bem, vai, vai. Eu estava fora de Aristóteles e tal e, aí, durante algum tempo, aquela maluquice ficou sob o telhado do Tropicalismo. O Luiz Tatit tem razão - que, aliás, é homenageado nesse disco como um personagem chamado Maneco Tatit. E, quando do Tropicalismo - conforme diz Tatit, os meninos Gil e Caetano estavam interessados em fazer a música popular dos anos 70 -, eu, aí, tive que sair, porque eu não sabia fazer outra coisa, eu não sabia fazer música popular. É claro, quando eu digo que não sei fazer a música...

Paulo Markun: Quer dizer que o Tropicalismo foi um rio que passou na sua vida? [referência à música "Foi um rio que passou na minha vida", de Paulinho da Viola]

Tom Zé: Foi um rio que passou na minha vida.

Júlio Medaglia: E o que você pretende fazer agora nesse mundo do Iraque votando [em outubro, foi ratificada em um referendo popular a Constituição do Iraque; em dezembro, houve as eleições para eleger o governo definitivo (havia um interino desde a queda do ditador Saddam Hussein pela invasão militar estado-unidense de 2003); as eleições causaram expectativa por causa do estado de caos do país por causa da insurgência contra os invasores], o Vaticano votando [em abril, um conclave escolheu o novo papa, Bento XVI], o [deputado] Severino [Cavalcanti] mandando [em fevereiro, Severino foi inesperadamente eleito presidente da Câmara, um representante do "baixo clero" político derrotando os candidatos do partido governista; renunciaria sete meses depois por causa de um escândalo de corrupção chamado "Mensalinho"], o que você pretende fazer?

Tom Zé: Olha, eu tenho muitos planos, Júlio. Inclusive, um nasceu de você; é por isso que toda hora eu estou aqui falando em você. O Júlio foi levado para um lugar onde ele pariu feito um [Ludwig van] Beethoven [(1770-1827), alemão, um dos maiores compositores da história da música ocidental, autor da Nona Sinfonia]. Ele foi levado por um pessoal que faz som - eu quero contar isso a vocês porque é a vida; é por isso que eu digo que música não me inspira e que eu não tenho inspiração: o que eu tenho é “sopapo no cognitivo”, eu tenho é “sopapo no cognitivo”. Eu não tenho inspiração, inspiração é um negócio de Deus; eu tenho “sopapo no cognitivo”, que, de vez em quando, [exaltado] bate assim e eu fico tonto. O Júlio foi chamado para ouvir - vejam bem que coisa engraçada, mesmo porque ele não conseguiu falar até agora; inclusive, a minha comadre, minha santa comadre Suzana Salles [presente na platéia de convidados]... O Júlio foi chamado para ouvir esses sons que hoje tocam no carro. Vocês já ouviram quando passa aquela zorra, [balançando fortemente os braços] parece que vai derrubar a rua, parece um caminhão Fenemê da desgrama! E ele, aí, entrou lá - com o espírito avaliativo dele de ter visto o mundo da música clássica, o mundo da orquestra e toda a sua capacidade sonora de encher os corações e os ouvidos -, ele viu que existia um novo tratamento da matéria vibratória - que é o som, não é? E que esse tratamento, o pessoal que estava cuidando do - repetindo palavras dele - o pessoal que estava cuidando do seu [Wolfgang Amadeus] Mozart [(1756-1791), compositor austríaco] tinha deixado para lá. Porque, na hora em que ele pediu para botar “A noite da"... [hesita]

Júlio Medaglia: "...transfigurada".

Tom Zé: "...transfigurada”, as coisas que ele sabia que eram as mais poderosas de orquestra, aquilo não soava nada para aquele som que tem lá. Você sabe como é, Tárik, [agitando os braços] que tem um contrabaixão, um surdo e tal e que botam os meninos para frente e tal - quer dizer, "que bota para frente"... que bota para frente ou para trás, que sacode eles, não é? Júlio, você pode crer: eu, no dia em que eu vi aquilo, eu não dormi mais.

Júlio Medaglia: Eu também não.

Tom Zé: E eu sou ousado! Vocês estão vendo eu aqui dizer que sou humilde, que eu sou ruim - eu sou ousado. Nesse plano, eu me engajo! De pegar o que você disse e dizer: eu sou capaz de fazer isso, de fazer uma música para aquela coisa, com qualidade, com timbres, com brasilidade, com assuntos, com essa coisa que... Hoje em dia, os próprios trabalhos para crianças, engraçadamente, já têm mais de um centro tonal [nota de referência em torno da qual é construída uma melodia, uma harmonia, um acorde ou uma música - neste caso, é chamado "tom" da música]; o trabalho de música popular de adulto não tem, não se arrisca nisso... [interrompendo-se] Tá bom, deixa para lá.

Júlio Medaglia: Tomara que você faça essa música.

Tom Zé: Tomara que eu viva uns dez anos para ver se eu consigo. Então, eu estou respondendo: “O que você quer fazer?” Eu quero tentar fazer isso.

Paulo Markun: OK. Sílvio Ribeiro manda a seguinte pergunta, Tom Zé: “O profeta Isaías, desde os tempos bíblicos, já dizia: 'Sou a voz que clama no deserto.' Você já se sentiu assim diante da MPB [música popular brasileira]? A voz que clama no deserto?”

Tom Zé: Olha, de algum modo, uma coisa está surda aqui até agora, como a voz que clama no deserto, que é o problema do sexo de que eu trato nesse disco... E eu podia evocar outra que clama no deserto, [lendo nas suas anotações] que é Carmita Abdo, diretora do Departamento de Sexologia da USP [Universidade de São Paulo], que disse... Veja bem, eu estava fazendo o disco preocupado com o problema das mulheres que não gozam, porque encontrei isso tanto na minha vida que fiquei assustado. Tanto que essa idéia se fortaleceu no dia em que eu saí daqui, no programa do Gilberto Gil, na hora em que ele recebeu o Grammy; nós saímos daqui com o Werneck...

Paulo Markun: [O jornalista] Humberto Werneck.

Tom Zé: Humberto Werneck, que era diretor de revista de mulher nua [Werneck foi redator-chefe da revista Playboy e depois tornou-se editor sênior da mesma]... Eu, aí, por acaso, falei com ele: “Escuta, rapaz, eu tenho me preocupado com esta quantidade de mulher que não goza que eu conheci na minha vida” e tal, e falei: “O que você acha, você, que trabalha no ramo, que tem a ver com mulher?” O tal do "Banca de revista - Açougue informal - Plena praça" - que são revistas de mulher nua - "Ninguém suspeita a dor nesse ideal / a dor ninguém suspeita imperial" [trecho da letra da música "Mulher navio negreiro", de Tom Zé, gravada no disco Estudando o pagode]. Ele aí me disse: “É, agora que você está me perguntando, eu começo a duvidar de muitas performances que eu ou provoquei ou assiti.” E eu continuei fazendo o disco nisso, com medo que me dissessem assim: “Você é um maníaco, que diabo...!” Aí, no dia 24 de outubro de 2004, depois de quatro anos trabalhando no disco, sai essa pesquisa do Departamento de Sexologia da USP [a câmera mostra uma fotocópia da reportagem, que Tom Zé segura], dizendo que 60% das meninas e moças e pesquisas em 13 estados, sete mil e tantas pessoas - mas me parece que aqui se refere mais aos jovens. [lendo] “Início da vida sexual decepciona jovens”. Que, das meninas, 60% se queixam de dores na penetração, de que os rapazes não ligam, que elas não têm tempo de se excitar, que não gozam e os rapazes não estão nem aí com isso e tal. Quer dizer, aquele negócio que eu falei no princípio de que os homens não estão ligando para a mulher e que parece... Tem um negócio no interior que é recorrente, não é? O negócio do recorrer à cabra, "jega", égua, essa coisa toda folclórica, [levanta-se] e vai largar um negócio já tão bem formado com reentrâncias e saliências - a mulher, não é? -, reentrâncias e saliências tão adaptadas já, o corpo parecido e tal, para ir atrás de égua e do diabo, [inaudível, em tom indignado]... Bom...! [senta-se]

Júlio Medaglia: Você tem notícias de que seu disco tem provocado orgasmos nas mulheres, ou não?

Tom Zé:
Não, isso...

Tárik de Souza:
[sorrindo] Tem uma faixa lá com orgasmos intensos, não é?

Tom Zé: É.

Maria Amélia Rocha Lopes: Eu queria muito saber como é que foi essa gravação, Tom Zé.

Patrícia Palumbo: [sorrindo] A Suzana sabe!

Maria Amélia Rocha Lopes: Eu queria saber como é que foi a gravação do orgasmo.

Tom Zé: Quem gravou o orgasmo foi [a atriz] Luciana Paes de Barros...

Paulo Markun: Você chamou a turma do Humberto Werneck, não é? Você chamou a turma [quase não consegue terminar a frase de tanta vontade de rir] que fingia.

Patrícia Palumbo: Mas, olha só:...

Tom Zé: Quem gravou o orgasmo e o jegue foi a Luciana Paes de Barros.

Flávia Guerra: [séria, apesar de todos estarem rindo] Mas você diz, no "Prazer carnal" [música do CD Estudando o pagode], que estão querendo separar o sexo, o prazer carnal, do amor...

Tom Zé: Correto.

Flávia Guerra: Você acha que muitos desses problemas têm a ver com isso?

Tom Zé: [colocando a mão em concha atrás da orelha] Muitos desses problemas...?

Flávia Guerra: Dessa separação, prazer carnal e amor - que você até cita na música.

Tom Zé: É, é, acho que sim.

Suzana Salles: [sorrindo muito] Você acha, Zé?

Tom Zé: Repara, repara: vamos pintar um quadro que, às vezes, é mais fácil que uma teoria. Uma casa no interior, onde eu nasci; as filhas moças, os filhos homens, o pai de família lá sentado: “Ah, porque fulano de tal abriu as pernas e não sei o quê, não sei o que lá..." "Ah, porque tanto faz Maria de saia arriada como Joana de saia abaixada", "Ah, porque...” A condição feminina é sempre vergonhosa. A menina que passa a vida toda ouvindo: [fazendo a mão direita subir em degraus do chão até acima da sua cabeça] "Fulana de tal abrindo as pernas". Uma das maneiras da criatura humana se realizar é sexualmente; a mulher, é abrindo as pernas que se realiza sexualmente! Ou pode ser realizado de perna fechada? Que diabo! Então, a mulher que ouviu a vida toda - chama o [Sigmund] Freud [(1856-1939), fundador da psicanálise; na sua vertente, o impulso sexual tem importância central na compreensão do comportamento humano] aí para ajudar a gente [risos] -, e que ouviu a vida toda [colocando a ponta dos dedos no topo da cabeça] "abrir as pernas é feio", "abrir as pernas é feio", um dia, mesmo com o casamento, ela abre as pernas e diz: "Mas que diabo de horrível eu estou fazendo?" Aí, tranca o negócio e não goza! Teoria daqui, o Freud José de Irará.

Júlio Medaglia: O "Freud de Iraí".

[...]: De Irará.

Júlio Medaglia: De Irará, o "Freud de Irará".

Carlos Calado: Tom Zé, tem uma sacada interessante nesse seu disco. Na verdade, acho que foi uma estratégia que você inventou, [a] de consultar esses dois adolescentes - que, inclusive, estão aqui na bancada - e você deu, inclusive, a eles, o direito até de vetar algumas músicas...

Tom Zé: Sim.

Carlos Calado: ...na medida em que eles não sentissem que essa música poderia agradar outros jovens e tal. Então, na verdade, eu queria te perguntar se, realmente, eles chegaram mesmo a vetar alguma de suas músicas e se você concordou com eles. E, na verdade, eu iria um pouquinho mais adiante: eu queria saber se você realmente acha, mesmo fazendo isso, que a sua música está ficando mais clara ou mais fácil de ser assimilada. Eu, sinceramente, acho que ela está cada vez ficando mais complexa, mais criativa - e tome isso como elogio. Agora, eu quero saber a sua opinião.

Tom Zé: Sim, sim, sim! Olha, veja, eles são meus vizinhos, meus amigos, a Fernanda Dellomo e o Pedro Luiz Gonzaga [de 16 anos, presentes entre os convidados]. Esse diabo da tal liberdade de criação, isso é uma boa de uma banana, isso é uma boa de uma banana, isso não é nada, Júlio. Liberdade de criação: boa... boa... não falo palavra feia para não dizer que eu estou esculhambando o programa da santa Cultura. Eu, mesmo, nunca gostei de liberdade, só fez me atrapalhar. Eu tive a liberdade de fazer tudo a vida toda; por que não fiz a Décima Sinfonia? [para continuar a seqüência das nove sinfonias de Beethoven, um dos momentos mais altos da música ocidental] Por que não fiz? Que diabo de liberdade e tal? Então, eu precisava do seguinte: eu precisava, eu tinha o sonho de que um menino tímido, como eu fui aos 16 anos, pudesse tocar uma canção fácil e que, ao mesmo tempo, não fosse estúpida, claro - porque eu não sei fazer uma estupidez! A Neuza [esposa de Tom Zé, também presente entre os convidados] teve muito medo. Eles dois [os meninos] faziam um crivo da possibilidade dos jovens tocarem, a Neuza fazia o crivo do respeito estético. Ela dizia: "Isso não é digno de você!" Várias vezes, ela disse. Na Semana Santa do ano passado, a canção chamada “Vou pensar” [que saiu no CD como "Quero pensar (a mulher de Bath)"] - que fica, na estrutura, naquela hora em que o rapaz faz uma proposta de novo amor à moça, e a moça, diz: "Espera aí, não se dá um 'sim' assim, à toa! Deixa eu pensar nisso" e tal -, eu fiz a música cinco vezes. Na quinta-feira de noite, mostrei à Neuza e ela achou muito complicada. Na quinta-feira de madrugada, eu fiz, mostrei à Neuza de manhã e ela disse que, agora, estava muito boba. Na quinta-feira de tarde, eu fiz outra, chamei os meninos, eles disseram que estava muito difícil. A música era assim: [cantando] “Vou pensar, rapaz, um pouco mais, não se dá um 'sim' assim, à toa". E isso, com um ritmo muito sofisticado, daquela coisa, "qué-tch-cum-tá cô-tch..."; se tivesse um violão aqui, eu mostrava. E eles chegaram e disseram: "Isso não dá certo." E a música acabou ficando com a letra parecida, mas: [cantando] “Quero pensar, meu bom rapaz / Numa boa: / Não se dá um 'sim' assim à toa (...) E de chinela / Só de chinela, de só de chinela / Vou pensar com meus anéis”, com alguma malandragem carioca - meio apanhada, porque eu não sou carioca e nem nada -, e aí eles aprovaram. Só para dar um exemplo. Mas a função deles foi muito mais importante do que saiu nos jornais. Eles eram chamados no começo. Eu não queria liberdade, eu queria uma cerca, aquela de arame farpado, conforme já tem na capa do disco em volta de mim.

Paulo Markun: Mas, Tom Zé, esse seu disco é muito mais complicado do que São São Paulo, meu amor. Muito mais complicado, não dá para cantar a música.

Patrícia Palumbo: No entanto a platéia estava cheia de jovens, Markun. A platéia do show neste final de semana estava cheia de jovens.

Paulo Markun: [algumas palavras inaudíveis faladas junto com Patrícia Palumbo] ...eu quero saber se alguém vai cantar.   

Tom Zé: O problema que ele está trazendo é outro. Eu tenho que correr esse risco. Porque, Júlio, eu fiz todas as... Você ouviu o disco? Eu sei que você não ouve... [risos]

Júlio Medaglia: Ouvi, sim.

Tom Zé: Você não tem saco mais para ouvir. Mas, assim: eu ainda fiz outra ousadia. Eu fiz todas as canções com duas horas. E não tem essas [vozes] paralelas de música caipira; em duas horas contrapontísticas, por exemplo... [contraponto: técnica musical em que duas ou mais melodias são compostas de forma articulada, sob certas regras, para serem tocadas simultaneamente; Tom Zé contrapõe certa parte de seu CD ao dueto das músicas caipiras, no qual as duas melodias - as duas vozes da dupla - são cantadas ao mesmo tempo, mas são adaptações da mesma melodia em duas alturas diferentes; no contraponto, a diferença entre as duas é muito maior]

Paulo Markun: É um diálogo.

Tom Zé: ...o homem dá um tom e a mulher dá outro, propondo que o jovem chame a moça e que eles tentem cantar. Ora, está bom, isso é difícil, estou de acordo com todos vocês, mas o sonho é livre e, daqui a pouco, alguém lá do interior dá na telha de querer fazer justamente... Porque é um pouco diferente... Deus nos salve!

Paulo Markun: E você, afinal, encontrou a tal canção das lavadeiras, da fonte da nação de Irará aonde você diz que... porque é aquilo que perpassa o começo do disco.

Tom Zé: É, é.

Paulo Markun: Porque é uma coisa que parece canção de lavadeira.

Tom Zé: Quem sabe? Pode ser que, no futuro, tenha um povo que não queira fazer nada, tenha uma classe numerosa, ou de baixo ou de cima - nessa hora ninguém sabe nem o que está por baixo, nem o que está por cima, como diz a teosofia, porque a primeira coisa da teosofia é que ninguém sabe o que está por baixo, o que está por cima [citação da Tábua de esmeralda, texto atribuído a Hermes Trismegisto, suposto autor egípcio da Antigüidade] -, e que tenha um grupo de pessoas que se interessem por isso, os mestres de banda do interior, que são muito bem capazes de ensinar os jovens até a compor com contrapontos - até as três vozes eles fazem bem; quando Koellreuter chegou com quatro vozes na Bahia, foi o que rodou a cabeça deles - e que isso forme um grupo de pessoas que se interessem e voltem a ter um espaço na televisão. Porque é lindo! Eu queria que pudesse tocar em um show para aquelas pessoas que... É o tal negócio: está muito bem, eu sou complicado; mas, quando eu toquei no Abril para o rock, em 1998, [para] 8500 pessoas, às oito horas da noite, em um show que ia até a meia-noite e começou às seis - quer dizer, eu era nada, [às] oito horas, o que toca não é nada - e, quando eu toquei, não [se] mandou trocar a platéia [de] 8500 pessoas – “sai os analfabetos, vem os cultos, os inteligentes, que o Tom Zé vai cantar”. Não mandaram fazer nada disso, ficou o mesmo público. E fez um sucesso tão filho da mãe que o show quase que não pôde continuar! A imprensa toda estava lá, do Brasil, e viu. Tem hora que o diabo vira...

Maria Amélia Rocha Lopes: Tom Zé, é verdade essa história - eu tomei um susto quando eu li - de que você jamais recebeu um prêmio por “São São Paulo meu amor”?

Júlio Medaglia: A grana?

Maria Amélia Rocha Lopes: A grana?

Tom Zé: É, é, a Record....

Maria Amélia Rocha Lopes: Isso valia, na época, três fuscas.

Tom Zé: A Record pagou e o turismo da Prefeitura... Foi assim, foi até engraçado: o secretário meu...

Júlio Medaglia: Eu que entreguei o prêmio!

Tom Zé: Aí, correto! O Júlio que me deu o cheque da Record, eu tenho um retrato dele...

Tárik de Souza: O símbolo, não é? O símbolo, o símbolo, não a grana.

Tom Zé: Eu tenho um retrato com o Júlio, lindo. Mas ali, Júlio, ali aconteceu o seguinte, o secretário...

Júlio Medaglia: O cheque era frio? Foi eu que te entreguei o cheque!

Tom Zé: É, o cheque da Record, com a metade do prêmio! A Prefeitura, que ia pagar a outra metade, e o secretário estavam ali e lá já tinham me dado até uma parte do prêmio da Prefeitura, que era o Sabiá de Prata. Ele, aí, me chamou no fundo e disse: "Tom Zé, eu vou fazer uma festa para te dar o dinheiro e esse Sabiá... Dê cá o Sabiá." [risos]

Paulo Markun: Tomou o Sabiá?

Tom Zé: Perdi tudo! Antes um Sabiá na mão do que dois voando. Nunca mais recebi nada!

Júlio Medaglia: Quarenta anos depois de “São São Paulo Meu Amor”, se fosse fazer hoje uma... Eu acho que o verdadeiro hino a São Paulo foi esse que você fez, não é?

Tom Zé: Certo.

Júlio Medaglia: Tem todas as loucuras da cidade. Você faria como hoje o hino da cidade? Seria igual, seria diferente ou não faria?

Tom Zé: Ah, eu acho difícil. Eu fiz... Você sabe, depois, eu fiz "Augusta, Angélica e Consolação"... Eu fiz, agora, uma música com os personagens de Adoniran [Barbosa (1910-1982), o mais famoso compositor de samba paulistano, autor de "Trem das onze"], que está no disco. É... como é que é...? [cantando] “De ferro e bronze, o trem das onze voltará...”

Paulo Markun: Que é a música mais popular do disco. Essa toca e nego canta.

Tom Zé: É, essa pode até tocar, tem a ver. [cantando] “De ferro e bronze / O trem das onze voltará / Em Jaçanã bem de manhã / Apitará / Comemoremos Matogrosso, eu e Joca / com Iracema e o Arnesto na maloca.” [trecho da letra de "A volta do Trem das onze", que contêm referências a várias músicas de Adoniran Barbosa como "Trem das onze", "Samba do Arnesto", "Iracema" e "Saudosa maloca" (que tem os personagens Matogrosso e Joca)] Sim, mas "São Paulo", não sei, Julio... Se tivesse um desafio, eu não sei como iria fazer. Naquele tempo, tinha uma contradição, era como no tempo de Ésquilo [525-456 a.C.], Sófocles [496-406 a.C.] e Eurípides [485-406 a.C.] [os três maiores poetas trágicos da Grécia Antiga, sendo Ésquilo considerado o fundador da tragédia]: tinha uma grande contradição moral. Todo mundo vinha para São Paulo ganhar a vida com a música popular e todo mundo falava mal de São Paulo. E eu, que sou repórter, não sou músico, cheguei e disse: "Que coisa engraçada" e tal. Aí, fiz uma letra, como você bem disse, falando tudo que São Paulo tem de ruim. No fim: “Porém, com todos os defeitos / te carrego no meu peito / São São Paulo, meu amor / São São Paulo plantador” - como, novamente, [gingando com o tronco, representando jogo de corpo] armei uma malandragem cartesiana.

Maria Amélia Rocha Lopes: Tom Zé.

Tom Zé: Sim.

Maria Amélia Rocha Lopes: Você falou que faz reportagem e, na época em que você fez “São São Paulo meu amor”, tinha Adoniran, tinha tudo isso; e a São Paulo de hoje, pelo menos a São Paulo do Centro, tem muita rapaziada fazendo rap, que é uma forma de reportagem, também, do cotidiano deles e tudo.

Tom Zé: É.

Maria Amélia Rocha Lopes: Eu queria saber se você ouve e o que você acha disso.

Tom Zé: Olha, eu vou confessar uma coisa a vocês: eu não ouço música. Eu sou como o Júlio: eu não ouço desgraça de música nenhuma, Deus me perdoe...

Júlio Medaglia: Tem a vantagem que você não precisa ouvir o rap, assim, também.

Tom Zé: Eu tenho ódio de música...

Maria Amélia Rocha Lopes: Eu tinha a certeza que o maestro [Júlio Medaglia] iria fazer um "porém"...

Júlio Medaglia: Não precisa ouvir o Belo, também, o rap...

Tom Zé: Eu tenho ódio de música. Agora, eu preciso saber o porquê. Que quem é gênio, tem inspiração, faz, toca no rádio; então, pode ouvir. Quando eu vou ouvir rádio, eu só sinto tristeza! Porque eu nunca toco no rádio... Não, isso também é exagero: no ano passado, tocaram quatro músicas minhas. A... como é o nome dela...?

Carlos Calado: Mônica Salmaso.

Tom Zé: Mônica Salmaso gravou “Menina amanhã de manhã”, Zélia Duncan gravou “Tô”, Adriana Maciel gravou “Solidão”...

Carlos Calado: Jussara Silveira...

Tom Zé: ... e Jussara Silveira gravou...

Maria Amélia Rocha Lopes: "A Volta..."

Tom Zé: "A volta de Xanduzinha". Que foram as músicas delas que tocaram no rádio.

Paulo Markun: Aliás, o Rogério Augusto Oliveira quer saber, pegando uma carona nisso, como é que você explica o fato de ter várias mulheres interpretando as suas músicas como Mônica, Zélia, Adriana e Rebeca Matta.

Tom Zé: É inexplicável! Um disco que foi feito em 76, que foi descoberto em 90, 14 anos depois, agora em 2004, 14 anos depois, as moças todas gravam...! Vamos ver...

Júlio Medaglia: É o orgasmo depois de 14 anos, viu?   

Tom Zé: É uma...

Paulo Markun: Mas você não...

Júlio Medaglia: É um orgasmo depois de 14 anos.

Tom Zé: É um orgasmo de 14 em 14 anos.

Paulo Markun: Mas você não respondeu a pergunta da Maria Amélia: o que você acha do rap? Quer dizer, você não ouve... [fala junto com Tom Zé] ...acha?

Maria Amélia Rocha Lopes: [fala junto com Tom Zé] ...o que você acha?

Tom Zé: Chico Buarque tem razão, é uma forma de expressão; é, talvez... Agora, essa reportagem que o Pedro Alexandre...

Maria Amélia Rocha Lopes: O Chico Buarque acha que a canção acabou e que agora é o rap.

Tom Zé: É, essa reportagem que o [jornalista e crítico de arte] Pedro Alexandre [Sanches] fez na Carta Capital sobre a violência e os ricos indo lá cantar com os pobres, essas maluquices todas, que isso acaba sendo uma maneira de escapar, senão esse mundo explodia... Eu não sei... Por exemplo, quando eu era comunista, eu estava doido [para] que o mundo explodisse; agora, acabou o comunismo, não sei mais [para] o que é que eu estou doido... Essas... É interessante você ouvir uma ou duas vezes; quando chega na terceira e quarta, você começa a ouvir um cansaço, que é a repetição, e fica um pouco...

Maria Amélia Rocha Lopes: Então, você ouve?

Tom Zé: Eu já ouvi, eu sou curioso! Eu sou curioso. Tem disco no Brasil que eu ouço: [os grupos] Cabruêra [que faz músicas inspiradas nos gêneros tradicionais nordestinos, mas com amplo uso de recursos tecnológicos], Barbatuque [cujos músicos fazem percussão nos próprios corpos], muitos outros que eu vou esquecer aqui.

Maria Amélia Rocha Lopes: Você já ouviu [o grupo] Sabotage, você já ouviu...

Tom Zé: Sabotage, eu soube que eles cantaram uma música minha, “O Lixote”, do Globo... [digitando com os dedos no ar]

Paulo Markun: Globo News.

Tom Zé: Isso, do Globo da internet. Mandou me falar, mandou um disco, eu ouvi... Agora, o David Byrne, quando eu chego lá, às vezes, ele me mostra uma coisa que ele acha especial e eu olho, sento e ouço com toda a dedicação. Mas eu tenho ódio à música, Markun, eu tenho ódio à música, porque eu não sou dos que tocam, então eu fico...

Paulo Markun: O Carlos José dos Santos Filho, do bairro do Piquiri, aqui em São Paulo, que é bancário, pergunta que análise você faz do rock nacional atual de nomes como Detonautas, Charlie Brown Júnior e CPM22, se dá para fazer uma comparação entre esse rock de hoje e a música dos Mutantes [um dos principais grupos brasileiros de rock, ativo de 1966 a 1978 (e a partir de 2006, com nova formação); experimentavam instrumentos diversos e participaram do movimento Tropicalista], por exemplo.

Tom Zé: Ah, não!

[reações espontâneas dos entrevistadores na forma de murmúrios surpresos de desaprovação e risadinhas]

Tom Zé:
Aí, não... Mutantes era uma coisa sofisticada, timbrística, ouvido aberto para tudo que se oferecia... Mas eu também não falo mal de ninguém: eu não conheço - porque eu sou analfabeto, não é porque eles não merecem que eu não conheça, não.

Flávia Guerra: Pegando carona na pergunta da Maria Amélia...

Tárik de Souza: Tom Zé, deixa eu te perguntar uma coisa, você falou várias vezes que você é da mesma escola do Júlio Medaglia e você citou o Koellreuter. E eu queria que você dissesse: o Koellreuter, o Ernst Widmer [compositor que liderou o núcleo baiano do movimento Música Viva] e o Smetak [(1913-1984), músico, artista plástico e construtor de instrumentos alternativos, nascido na Suíça, mas mudou-se para o Brasil em 1937; influenciou vários músicos tropicalistas], no que eles contribuíram para a sua música?

Paulo Markun: Que foram os seus professores na Universidade Federal da Bahia, não é?

Tom Zé: Federal da Bahia. Olhe: o Ricu. O Ricu. O sanfoneiro, os violeiros, aqueles instrumentos desgraçados do Nordeste desafinado, as segundas menores, as oitavas confusas [segunda menor: intervalo entre duas notas consecutivas, como entre um dó e um dó sustenido, ou entre um dó sustenido e um ré etc; Tom Zé parece querer dizer com isso que os sons eram desafinados: ao invés de dois instrumentos fazerem a mesma nota, a ligeira diferença entre eles acabaria produzindo um intervalo de segunda menor. Oitava: distância entre duas notas consecutivas com o mesmo nome, como entre um dó e o próximo dó acima dele], aquilo tudo estava no meu ouvido. Tinha um sanfoneiro em Irará - é pena que não tem um violão aqui - que gostava de dizer assim: "Você quer ver que eu canto num tom e acompanho no outro?" "Brincadeira!" É gozado: então, ele fazia dó, fá, sol, dó [talvez Tom Zé tenha querido dizer "dó, mi, sol, dó", que formam o acorde de dó maior] e tocava uma música qualquer de folclore; aí, botava em um tom de sol e começava a cantar em sol. E você ouvia. Era uma coisa gozada isso, eu não sei se alguém de nós já teve o capricho de ver: quando você faz uma tônica, mesmo que você não esteja cantando naquele tom, mas esteja cantando em outro tom vizinho, faz a dominante e volta para a tônica, parece que as duas coisas convivem em uma outra espécie de politonalidade. Agora, veja a cabeça de um sertanejo filho da mãe! Então, onde eu encontrei essa coisa foi naquele braço da Escola de Viena que foi para a Bahia, aquele rigor. Koellreuter tinha um negócio admirável: era o jeito que ele tratava pedante. [estica uma perna para cima, exibindo o pé] [risos] Pedante, gente metida a besta que ia lá falar de coisa com ele... Aquele personagem de [inaudível] que ele é... [estica de novo rapidamente a perna para cima e o seu calcanhar (sem meia) sai do tênis] Outra coisa gozada que ele tinha [arrumando o tênis]: quando ele entrava na sala, aquelas meninas, filhas de rico na Bahia, todas faziam um... um... como é que chama...? Um trêmulo de terça maior [distância entre duas notas que predomina em duetos vocais em geral, igual, por exemplo, à distância entre as duas primeiras notas de "Eu sou pobre pobre"], as partes inteiras, as partes principais. Ele era um encanto. Comeu as menina da Bahia todas, as ricas todas. [risos] Todo mundo sabia. E, quando eu fui brincar com ele agora, da última vez que eu encontrei ele, ele se lembrou e disse: "É; e depois eu fui para a Índia, que também tinha mulher de sobra!"

Paulo Markun: Flávia Guerra.

Flávia Guerra: Eu queria pegar carona na pergunta da Maria Amélia. E o pagode, você ouviu? Eu sei que você ouviu um disco do Belo aqui, emprestou até do seu porteiro...

Tom Zé: É, eu ouvi, porque tocava no prédio...   

Flávia Guerra: O que você ouviu?

Tom Zé: E, aí, o que aconteceu foi o seguinte. Eu não vou mentir, dizer isso nem aquilo. Realmente, é uma coisa bastante diluída, bastante fraca e tal, que é o que as classes mais humildes agora estão... como é que diz? Educadas...

Flávia Guerra: Massacradas.

Tom Zé: Tudo bem, tudo bem. Mas, aí, aconteceu o seguinte. Por que foi que eu vim a me interessar? Primeiro, pela solidariedade com o desgraçado, que é a mulher e o pagode. Segundo, porque eu ouvia toda noite na hora de dormir - e, uma noite, eu ouvi um pagode do Belo, ouvi um pagode que eu não sabia de quem era, que me lembrou uma música minha, “Se o caso é chorar”: [cantando] “Amor, deixei sangrar o meu peito...”, que foi sucesso, primeiro lugar nas paradas nos anos 70. E, aí, eu disse assim: "Mas que diabo, essa música..." Aí, perguntei ao zelador: "Uma música que fala tais e tais palavras, o que é?" O Chico, o meu zelador lá, o Assis, ele disse: "É do Belo." E eu falei: "Tu me empresta o disco?" Ele, aí, me emprestou. Eu cheguei e botei a música. Aí, eu vi que os produtores do pagode, na diluição que o gênero já sofria, na baixa das vendas - já estava vendendo pouco - eles procuravam ir por todos os lados que o samba andou e tal e coisa. Aí, eu falei: "Pô, se eles podem fazer isso, eu também posso." É isso o que eu pus.

Carlos Calado: Tom Zé, já que o assunto é pagode, eu queria fazer um comentário que eu acho interessante. Eu estava lendo uma entrevista que você deu há pouco tempo na revista V e a razão disso é a seguinte: eu confesso que fiquei realmente surpreso quando vi você na TV UOL, como você repetiu aqui, pedindo desculpas aos pagodeiros, como se você tivesse feito alguma coisa de errado, e dizendo que, inclusive, o seu disco é uma homenagem ao pagode. Então, na verdade, eu acho que essa foi mais uma de suas inversões misteriosas, como você se referiu no começo do programa. Nessa entrevista, te perguntaram sobre aquele caso da coleção de moda, a chamada “Coleção São Tomé”, que aquele estilista de Belo Horizonte, o Ronaldo Fraga, fez, dizendo que era uma homenagem a você - e que você, na entrevista, estava contando que você, quando ouviu falar naquela homenagem, você ficou tremendo, porque era assim, abre aspas: “Já que em toda homenagem a gente acaba sendo lesado”. Então, por aí, eu comecei a entender por que você diz que você fez uma homenagem ao pagode. [risos]

Tom Zé: [gargalha]

Carlos Calado: Foi mais ou menos isso.

Tom Zé: [rindo] Olha, eu não faço nem comentários.

Carlos Calado: Eu entendi a homenagem.

Tom Zé: Ah, bandido! Belo texto, viu, bandido? Assino aí, tá bom!

[inserção de clipe musical]: [Tom Zé cantando acompanhado por um conjunto] "A Iracema em Jaçanã / a esperança parece vã / mas lá na maloca Adoniran / já se reforça com tapioca / e convoca a tropa"

Paulo Markun: Tom Zé, estamos de volta com o Roda Viva. Aqui, a pergunta do [teatrólogo] Gerald Thomas, que diz o seguinte: "Oi, Tom Zé, queridíssimo! Faz um tempo, você deve lembrar: depois de uns encontros que tivemos no Sesc [Serviço Social de Comércio], aqui no Rio, acabei escrevendo um insight a respeito de Darmstadt, da Alemanha, cidade conhecida pela sua música serialista, atonal, experimental" - espero que eu tenha acertado a pronúncia aqui - "com seus CDs debaixo do braço" - diz o Gerald Thomas - "todos os assim chamados compositores de ópera séria ficaram boquiabertos com o seu trabalho." Aí, a pergunta dele não tem nada a ver com isso. Ele pergunta o seguinte: "O Brasil mudou um bom bocado desde esse dia: Gilberto Gil virou ministro da Cultura, ou seja, ministro de si mesmo, matou o teatro; já tem ignorado você há um bom tempo. Me diga: o que você acha de Gil no poder?" É a mesma pergunta de Rian Júnior, de Lorena [no estado de São Paulo], músico: quer saber o que você acha do ministro da Cultura ser músico, já que a Ordem dos Músicos [do Brasil, OMB] está há mais de vinte anos no poder e nada muda. E, finalmente, para botar mais uma na roda, Nelson Pascareli Filho, da Mooca, pergunta: "Caso fosse convidado, você aceitaria ser ministro da Cultura?"

Tom Zé: Ministro da Cultura? Primeiro...

Júlio Medaglia: Seria maravilhoso, maravilhoso.

Tom Zé: Primeiro, a resposta sobre Gil. Olha aqui, ó: [bate no próprio rosto de um lado e do outro; continua batendo durante toda a frase a seguir] O cara tem dinheiro, fama, família, Grammy, o diabo, o cara vai dar a cara para bater lá, para ser ministro de um diabo de ministério que não tem dinheiro nenhum porque ele mesmo tem que inventar onde arranjar dinheiro, ele tem vocação para se sacrificar. Encerrei.

Paulo Markun: Você aceitaria ser ministro da Cultura?

Tom Zé: Se eu...?

Paulo Markun: Você aceitaria ser ministro da Cultura?

Tom Zé: Eu?! Ave Maria, eu não sei... Olha, a secretária que fica na porta do ministério me passava a perna e me botava no chão. Eu não sei tratar com coisa difícil. Aquilo ali é um... Como é que chama a casa do Minotauro? [criatura mitológica grega, com corpo de homem e cabeça de touro, que habitava o Labirinto, na ilha de Creta]

Maria Amélia Rocha Lopes: Labirinto.

Tom Zé: Aquilo é um labirinto, política é um labirinto. [olhando para Júlio Medaglia] Sabe o Marcos Eagle [que fez a masterização do disco Estudando o pagode]? Foi seu sonoplasta em uma novela da Globo que você fez. Eu queria dizer que ele me ajudou muito a fazer o disco, assim como [lendo num papel que está segurando] Jair Oliveira [cantor, compositor e produtor musical], assim como Rodrigo Sanches, que foi técnico de som, a coisa...

[...]: Tom Zé...

Tom Zé: Desculpa, deixa eu terminar de contar esse negócio aqui. Júlio, é uma coisa difícil da desgraça você convencer a um estúdio que você não quer eco, que você não quer efeito na voz, que você quer fazer o disco com uma voz normal para parecer diferente do conjunto das coisas! As máquinas já têm um...

Júlio Medaglia: Você não percebeu que a música no Brasil saiu da mão dos criadores e passou para os produtores, agora? Por isso é que está essa porcaria aí. Quando voltar para a gente...

Tárik de Souza: Nem para os produtores, para os marqueteiros.

Júlio Medaglia: Marqueteiros, né...

Tom Zé: E outra coisa curiosa - e [sobre] isso eu realmente sou linha dura aí; sou, sou, sou - quem faz um disco é o cara da mesa!

Júlio Medaglia: É.

Tom Zé: Você não... Olha, eu garanto a vocês que a coisa, a matéria musical, aquilo que se plasma - veja bem, eu não faço música, eu não sou artista, todo mundo aí sabe; eu faço canção popular, uma coisa bobagem e tal - o "com que se plasma" a música é com o som, o timbre, a diferença. Todos os discos do Brasil são iguais! A máquina já está pronta para gravar assim, que é a moda! Imagina que coisa sufocante! Então, Rodrigo Santos, coitado, ele tinha que ir lá, ele fotografava a máquina do jeito que a gente gravava para, no outro dia, poder repetir. Até isso! "Não, eu tenho a fotografia do que eu fiz." Era um sacrifício. Na hora do Marcos Ivo, que foi seu sonoplasta - e eu sei que você ama os sonoplastas brasileiros e tal...

Júlio Medaglia: É verdade.

Tom Zé: Foi fazer a... Como é que chama...? A masterização - dizem: "Ali não tem nada que mexer!" Mentira! A máquina que faz a masterização, bota presença, eco, chama igreja, aquele negócio que fica aquela coisa que ninguém mais é humano. É impressionante! Olha, vocês, cantores... cadê a câmera? É aqui? [olhando para a câmera] Vocês, cantores, vocês estão sendo enganados por um negócio criminoso! Vocês não fazem mais nada, vocês são botados dentro de uma caixa e postos na loja para vender! Vocês se transformam em todos iguais, parecendo uma série de fotografias iguais, aquilo que [Marshall] McLuhan [filósofo e educador canadense] chamou "o efeito da imprensa na cabeça do mundo", sei lá o quê, porque eu não sou intelectual para saber disso - agora devia ter aqui até um intelectual para me ajudar. Porque vocês precisam de socorro, vocês estão lenhados!

Carlos Calado: Tom Zé, essa sua urgência de dizer coisas - quer dizer, estou querendo ligar algumas coisas. Por exemplo, esse seu trabalho, esse seu disco, na verdade, são dois projetos em um. Você não ficou satisfeito em fazer uma retomada disso tudo no samba, fazendo um projeto, dissecando o pagode, refazendo o pagode; ao mesmo tempo, você embute nesse projeto uma opereta que fala da discriminação da mulher, você denuncia essa segregação... E outra coisa: cada vez mais, eu tenho visto você nas entrevistas falando: "Pô, eu já tenho 68 anos! Eu já tenho 68 anos!" Você está querendo recuperar o tempo perdido naqueles 15 anos de ostracismo? Você está achando que o seu tempo não é suficiente? Você está querendo tirar o atraso?

Tom Zé: Tomara que eu consiga responder markunianamente essa...

Paulo Markun: Eu vou virar o corpo caloso desse programa, pelo amor de Deus! [muitos risos] Eu falei para Neuza, sua mulher, que eu ia trazer a minha porção mulher para o programa. Eu trouxe e ela está quietinha aqui do meu lado, não conseguiu falar nada até agora! [risos]

Tom Zé: [risos] [virando-se para Carlos Calado] Desculpe...?

Carlos Calado: Você está querendo tirar o atraso, com todos esses projetos ao mesmo tempo, essa urgência, essas denúncias?

Tom Zé: Não, não, não. Aconteceu o seguinte.

Carlos Calado: Você está querendo tirar os 15 anos de atraso do ostracismo?

Tom Zé: Não. Aconteceu o seguinte. Aquela dificuldade toda, aquele super-mundo, digamos, do Euclides da Cunha, para poder - eu, com minha mísera inteligência - reduzir ele a um canal, demorou muito. Agora, eu acho que eu cheguei a uma certa organização. É claro que eu nunca vou ser popular, mas eu estou satisfeito com a quantidade de público que me compra. Eu tenho bastante idéia... Como eu só depois de velho consegui formular uma solução para fazer... Meu Deus, se eu pudesse pegar Paulinho Lepetit [baixista, compositor e produtor musical], Rodrigo Santos, Marcos Ivo, Jair Rodrigues [provavelmente, Jair Oliveira,  filho do cantor Jair Rodrigues], prender eles dentro de um estúdio para trabalhar dia e noite... Porque eu e minha mulher, agora, só trabalhamos com música. Ela faz, coitada, a parte mais dura, que é a parte do empresariamento, da negociação, da coisa, e eu faço a parte mais gostosa, que é aquilo de estar... Eu me lembro de uma coisa que me dá... Quando eu fiz aquele tipo de música em que cada pequena célula girava em torno de si mesma e como cada célula tinha um tamanho diferente, nunca tinha verticalmente o mesmo acorde, que é o Estudando samba, eu me lembrei de uma coisa que é igual, que é o Alexander Calder [(1898-1876), artista plástico estadounidense que inventou o móbile, tipo de escultura móvel e leve, formando um conjunto suspenso por fios], que é igual. Depois, depois; eu não me lembrei antes que é igual. Se lembrasse antes, também era ótimo: [de] quem tem idéia, a gente copia as idéias. É, agora, de vez em quando, me ocorre uma idéia, porque eu cheguei em uma fase... Então, eu, com 68 anos, estou como se tivesse, digamos, trinta. Não estou querendo me gabar de nada, não. Porque eu não tive, não consegui fazer, não consegui estudar direito naquele tempo... Agora, eu...

Maria Amélia Rocha Lopes: Tom Zé.

Tom Zé: Sim. E agora que eu não tenho mais nada para... Meu tempo é só para fazer música, então... O Alexander das Caldas tem uma coisa que ele conta assim: "Dia de domingo, eu ficava fazendo brinquedos para as crianças." Agora imagina o brinquedo que o Alexander fazia para os sobrinhos e netos dele! Então, eu vivo mais ou menos assim, com essa grande... Nesse paraíso. Ah, outra coisa: eu tenho um emprego formal. Desculpe, não é uma pergunta, mas eu vou responder: eu tenho um emprego formal. Minha vida está boa, eu tenho um emprego formal. É assim: eu trabalho para quarenta mil pessoas, de cada... eles não são exigentes, eu não sei fazer um disco por ano, porque eu não sou gerente, não sou nem compositor, nem gerente. De quatro em quatro anos, eu faço uma coisa. E eles me respondem pelo "se compram", "se eu estou trabalhando direito para eles". Eu tenho um emprego formal, formalizado. Aí, eu ganho para ter aquela casa, aquela vida, graças a Deus, com um casamento que me deu muita sorte. Uma moça disse que as mulheres não precisam de mim. Com toda razão: eu é que preciso das mulheres, tanto que sou casado com uma há 35 anos.

Paulo Markun: Só que ela é a funcionária e você é o bailarino, é isso?

Tom Zé: Correto. [muitos risos]

Júlio Medaglia: Tom Zé, daqui pra diante...

Maria Amélia Rocha Lopes: Deixa eu te fazer...

Júlio Medaglia: Daqui pra diante, agora; o que vai acontecer daqui para diante?

Paulo Markun: Tem um telespectador aqui que pergunta se você vai fazer o “Estudando o rap”. [muitos risos]

Tom Zé: "Estudando o rap"? Não sei, não sei; eu acho que não.

Paulo Markun: Espera aí, eu vou localizar o nome dele aqui já, já.

Tom Zé: Não, eu acho que não, porque, aí, vai ficar malandragem, vai ficar, como é, Duro de matar 1, Duro de matar 2, Duro de matar 3 [série de filmes de ação estrelados por Bruce Willis]... Aí, vira malandragem.

Maria Amélia Rocha Lopes: Tom Zé, deixa eu fazer uma brincadeirinha com você, rápida. Seu disco chegando à loja, onde você acha que ele deveria estar? No escaninho do pagode, no escaninho da MPB, onde você acha que ele deveria estar exposto para ser vendido?

Tárik de Souza: Você não acha que corre o risco de um cara que gosta de pagode levar seu disco para casa e, chegando em casa, tomar um susto danado?

Tom Zé: Corre, corre; [apontando para Carlos Calado] ele falou isso.

Maria Amélia Rocha Lopes: E o que gosta de ópera?

Tom Zé: O Calado falou nisso. Que, na hora em que o pessoal do pagode ouvir, vai dizer: "Que diabo é isso?!" Realmente. Júlio, você sabe - é claro que não é o meu caso, eu sou um simplório, mas uma pessoa lá que tenha capacidade de tudo, dessas coisas todas que a gente sabe de música, pode pegar... Bártok! [Béla] Bártok [(1881-1945) compositor húngaro e pesquisador da música popular da Europa Central e do Leste] pegou aquelas musiquinhas do folclore húngaro, harmonizou de acordo com as próprias notas, fez uma obra genial. Então, qualquer “Meu limão, meu limoeiro” pode virar uma obra genial. Eu trabalhei no pagode por isso, porque eu achava qualquer música... E eu tentei fazer música simples. Teve momentos, Júlio, em que eu fiquei com vergonha de botar na praça essas músicas. Quem deu dignidade a elas foi Jair... Jair...

[vários ao mesmo tempo]: Oliveira.

Tom Zé: ...Oliveira, que é um moleque formado lá em... [hesita]

Tárik de Souza: Berkeley [importante universidade na Califórnia, Estados Unidos].

Tom Zé: ...Berkeley e que aprendeu alguma coisa lá. Ele estava meio perdido aqui, está meio perdido aqui, mas ele sabe! Aquele moleque sabe alguma coisa!

Paulo Markun: Tom Zé, só para registrar, a pergunta [sobre] se você vai gravar “Estudando rap” é do Henrique Vanucci. E a Patrícia tem uma pergunta.

Patrícia Palumbo: Eu quero retomar essa sua bandeira, aí, do amor gay [faz um gesto ao redor do pulso para indicar o pano colorido amarrado no pulso de Tom Zé, que ele chamara de "bandeira gay"] para falar um pouco de amor com você. Porque toda essa sua opereta tem um final, não é? E, nesse final, você apresenta uma solução amorosa para a história toda. A Neuza, ainda há pouco, falou dessa coisa da retidão zen-budista e tudo mais. E eu queria que você falasse agora, aqui para a gente, como é que é o amor para você, já que você canta ele tão bem, mesmo dizendo que você faz música ruim etc e tudo. Mas você tem “O amor é velho-menina”, que é uma linda canção, tem “Menina amanhã de manhã”, tem outras tantas que falam do amor de um jeito muito particular e muito especial.

Tom Zé: Ó, eu acabei de fazer o show do Sesc e você falou em retidão e amor. Não sei por que, reverberou na minha cabeça: "Que diabo faz aquele diabo daquele Sesc lidar com tanto dinheiro e fazer sempre coisas que são irrepreensíveis!" É bom lembrar isso em um país onde isso é uma exceção única!

Paulo Markun: E registre-se: ao Sesc de São Paulo, não são todos os Sesc do Brasil.

Tom Zé: É verdade, é. Muito bem, que o [Danilo Santos de] Miranda [diretor regional do Sesc São Paulo - ver entrevista com Danilo Miranda no Roda Viva] está lá firme feito boi. É o seguinte, querida. Convenhamos, o tom que eu fiz com o “Menina amanhã de manhã”... mas algumas canções de amor minhas ficam ali na tentativa... Desculpe, eu canto o amor assim... como é que eu canto...? [colocando as mãos sobre a cabeça e olhando para baixo] É difícil como o diabo! Espera aí. Mas eu vou tentar falar!

Carlos Calado: Posso te ajudar? Posso te ajudar?

Tom Zé: Pode, pode, pode.

Carlos Calado: Só queria dar um exemplo desse disco: uma música chamada “O Amor é um rock”. Tom Zé diz o seguinte: "Sem alma, cruel, cretino, descarado, filho da mãe: o amor é um rock e a personalidade dele é um pagode."

Tom Zé: É, está bom, e eu ainda digo uma coisa melhor.

Patrícia Palumbo: E é egoísta, sim.

Tom Zé: Esta música é bonita, esta música é bonita. Fala assim: "Se você está procurando amor, deixe a gratidão de lado, o amor é egoísta" - e, aí, entra como se entrasse o coro da Capela Sistina [residência oficial do papa, no Vaticano, construída entre 1475 e 1483, em cujo teto estão as mais famosas pinturas de Michelangelo; as origens de seu coro remontam ao século VI]: "Sim, sim, sim, tem que ser assim!" Esse canto sobre o amor é bonito. Inclusive, lembra o nosso amigo Platão [(428-347 a.C.), um dos três maiores filósofos gregos, ao lado de Sócrates e Aristóteles] que, lá no [seu livro] Banquete, bota Diotima de Mantiméia para dar conselhos a Sócrates e a ele [ou seja, a Platão] e Diotima de Mantiméia diz assim: "O Amor é filho da Pobreza" - porque foi no aniversário de... Como é o nome da deusa do amor? Vênus eu não gosto de falar...?

[...]: Afrodite.

Tom Zé: Afrodite. Foi num aniversário de Afrodite que a Pobreza foi esmolar e ficou deitada lá. O Recurso, que tinha tomado muito - diz que não tinha vinho ainda; muito daquele outro negócio que os deuses bebiam, lá, [e] também não eram deuses -, deitou embriagado. E Pobreza chegou junto dele e se deitou. Dessa... e geraram um filho chamado Amor. Então, o Amor é filho da Pobreza e do Recurso. O Recurso é filho de Prudência, não é? O Recurso é filho de Prudência. E dizem, então, que o Amor, por isso que não é bonito, nem é belo; ao contrário: ele é feio, grosseiro, está sempre nos cantos e... Isso, pelo lado da mãe. E, pelo lado do pai, que é o Recurso, ele é sempre maquinador de soluções, ele é sempre o Don Giovanni [personagem principal da ópera homônima, estreada em Praga em 1787] do Mozart, ele é sempre o super-malandro, a superacuidade, a rapidez mental, a coisa que acaba conquistando o lado Pobreza dele mesmo. E eu sempre cantei um amor que é parecido.

Paulo Markun: Filho da Pobreza com o Recurso.

Tom Zé: Da Pobreza com...?

Paulo Markun: Um amor filho da Pobreza com o Recurso.

Tom Zé: Um amor filho da Pobreza com o Recurso. Que sou um pouco eu mesmo, não é? Mulher, filho da Pobreza com o Recurso...


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