O soberano é o
verso e reverso do povo, assim como Deus é o verso e reverso de demônio; assim
como a morte é o verso e reverso da vida; assim como a verdade é o verso e o
reverso da mentira; a seriedade é o verso e o reverso da farsa e o honesto é o
verso e reverso do corrupto.
Constituir-se
como verso e reverso – o soberano e o povo – está relacionado com a constatação
simples de que o mundo – ainda que múltiplo, indefinível – é o nosso comum
mundo, de todos e de ninguém – mundo de absoluta igualdade, independente do que
fizemos, fazemos e fizermos com ele, nele e através dele, porque, pelo menos
enquanto a morte for a única universalidade que realmente existe (todos
morremos), seremos inapelavelmente iguais, como vivos, inclusive se tivermos
como referência os vivos não humanos – somos iguais a eles. Morremos, logo
também somos iguais como consequência de nossa comum mortalidade no que diz
respeito ao abandono, porque todos estamos e somos abandonados, como habitantes
de um planeta igualmente abandonado, que, literalmente, gravita no infinito
vazio do cosmos, como um barco à deriva (um barquinho de papel, para ser ainda
um pouco mais preciso) no mar sem fim.
Dizer, pois,
que o soberano é a cara e a coroa do povo é o mesmo que argumentar que a
questão povo por excelência é a da igualdade no abandono – somos todos
igualmente abandonados, de modo que a saída digna para os abandonados da Terra
– todos nós – é a de nos cuidarmos, protegermos, cultivarmos, comumente, como
iguais em abandono.
O
abandono absoluto de uma família
Independente do
período histórico, tendo em vista as grandes civilizações, a questão do
soberano é também a da igualdade no abandono, embora na contramão do abandonado
povo, porque o soberano (ou as elites) é aquele que se torna mais igual que os
iguais, de tal sorte que a força de sua soberania ou de sua superioridade de
abandonado está em relação direta com o fato dele se fazer como mais igual que
o igual povo, do qual o soberano é uma deriva, num contexto em que quanto mais
o abandonado povo evidenciar na carne e no destino o abandono de que somos
parte, mais o soberano surgirá na foto como aquele que não é abandonado, como
aquele que não morre, que é uma espécie de Deus encarnado.
A verdadeira
dicotomia da humanidade, portanto, é aquela que diz respeito à igualdade no
abandono e o abandono da igualdade abandonada de que somos ao mesmo tempo
parte, arte e contraparte – empatados que todos estamos, como comuns mortais
abandonados.
Temos, pois,
dois comuns destinos: 1) um primeiro no qual e através do qual o abandonado
povo é todo o igual povo que se protege do abandono, de modo a produzir um
mundo de proteção de nosso comum abandono, a fim de que nossa passagem neste
abandonado planeta seja mais leve possível, além de criativa, de festiva, de
digna, maravilhosa; 2) um segundo no qual e através do qual o abandonado povo
torna-se a cara trágica e hedionda do abandono comum, sem comum cuidado e
proteção, porque o soberano lhe rouba a igualdade que o povo sempre produz,
através de sua existência concreta, tornando-se o único protegido do comum
abandono nosso.
Consideremos, a
fim de continuar o raciocínio, o romance Vidas
Secas (1938), de Graciliano Ramos (1892), livro extraordinário
porque narra o abandono absoluto de uma família de retirantes no seco nordeste
brasileiro – família composta pelo pai, Fabiano; a mãe, Sinhá Vitória; por dois
filhos, o menino mais velho e o menino mais novo; e pela cachorra Baleia,
personagem igualmente abandonada, como os demais, no sertão não menos
abandonado brasileiro.
Um
mundo sem igualdade
Tendo em vista
os dois destinos, para a vida na Terra, expostos acima, o de uma humanidade de
abandono comum, protegendo-se igualmente do comum destino de abandonada; e o
segundo que diz respeito ao roubo soberano do trabalho comum dos abandonados da
Terra, trabalho contra o abandono, penso ser possível evidenciar os seguintes
argumentos sobre o romance Vidas Secas.
Não é verdadeira a análise crítica que assume comumente a premissa de que Vidas Secas seja uma narrativa de
ficção que apresenta personagens humanos como se fossem sub-humanos, por
estarem no mesmo plano de abandono da cachorra Baleia, igualmente pertencente à
família de retirantes, como um legítimo membro da abandonada família de Fabiano
e Sinhá Vitória.
A
interpretação, portanto, de que Vidas
Secas constitui-se como narrativa de alguns personagens humanos que
se tornaram sub-humanos, pela miséria, está fundada na premissa de que o humano
é ou deve ser menos abandonado que os seres não humanos, premissa que coloca o
humano como o soberano, entre os vivos, da igualdade no abandono de que fazemos
parte, humanos e não humanos, situação que torna os não humanos os mais
abandonados seres da Terra, razão pela qual (deduz-se, de forma antropocêntrica)
devem ser absolutamente abandonados ou inferiorizados ou sacrificados, a fim de
que o humano ser possa produzir a crença ou a ilusão de que é diferente dos
outros seres, não humanos, seja porque, talvez, tenhamos a imagem e semelhança
de Deus; seja porque, talvez, sejamos racionais e os outros seres irracionais,
como nos ensinam ainda hoje o sistema de ensino.
O que Vidas Secas evidencia, diferentemente
da interpretação precedente, é nosso abandono comum, de humanos e não humanos,
porque somos igualmente abandonados e igualmente marcados por um destino de
abandonados – porque somos iguais, nem melhores e nem piores que os outros
seres do planeta. Vidas Secas
também evidencia, por outro lado, que o abandono igualmente absoluto, sem
garantia alguma de comum cuidado, dos personagens humanos e não humanos, da e
na narrativa de Graciliano Ramos, é consequência de um mundo no qual e através
do qual o povo (agora incluindo os seres não humanos, o povo de seres vivos,
portanto) vive realmente abandonado ao mais cruel dos abandonos, o da pobreza,
entendia como a carne seca expressionista dos condenados da Terra; condenados
bem entendido, a morrer de abandono, logo de falta de igual proteção do
abandono – de falta de um mundo de iguais, num mundo sem igualdade.
A
política policiada
Vidas Secasé, pois, uma singular narrativa de ficçãodo comum
abandono dos seres vivos da Terra; a ficção do retiro vivo do abandono, dos
vivos seres, num contexto em que aqueles que se acham mais humanos que os
outros humanos (os nobres, divinos e ricos humanos) condenam à pobreza, ao mais
cruel dos abandonos, a maior parte dos vivos seres da Terra.
Vidas Secas
é também o romance, portanto, que
assinala que nosso destino de seres abandonados está implicado com o desafio de
nos retirarmos sem cessar do abandono, transformando-nos em retirantes do
abandono, retiro tanto mais fascinante e justo quanto mais for um retiro comum,
de modo a produzirmos uma humanidade de retirantes do abandono ou, para não
ficarmos apenas no plano humano, um planeta de retirantes do abandono, situação
em quem sem cessar produziremos um mundo de iguais, sem abandonados,
socialmente falando. No entanto, para que as vidas humanas e não humanas
continuem infestadas de abandonos, através do abandono da pobreza, é
fundamental que exista a política do abandono ou a política de abandonar ou
ainda a política para os abandonados – política que é, na verdade, a polícia
para os abandonados, ou a polícia que serve e existe para que os abandonados da
Terra continuem como abandonados, abandonadamente.
Claro está que
a política, entendida como polícia para os abandonados, que serve para conter e
produzir abandonados, não deve ser entendida apenas como o aparelho policial do
Estado, sob a forma de exército, marinha, aeronáutica, polícia civil, militar e
assim por diante. A política policiada ou a polícia política para os abandonos
é tudo aquilo que serve para condenar os abandonos ao abandono absoluto, sem
que tenham chance de, retirando-se do abandono, produzir a igual proteção do
abandono, sob a forma de justiça, entendida ao mesmo tempo como igualdade de
abandonados seres a esboçarem sem cessar a proteção igual de nosso comum
abandono.
O reality show denominado Julgamento do Mensalão
Sob o ponto de
vista de uma polícia ou de uma política, entendida como polícia para os
abandonados, vê-se, portanto, que a polícia, como uma legião, está em todo
lugar: está no sistema de ensino, logo no saber; está no poder judiciário,
legislativo, executivo; está no sistema midiático, na família, trabalho, amor,
amizade, reconhecimento, sexo, no cotidiano; está, enfim, absolutamente em
tudo, porque tudo que fazemos, como abandonados seres, pode estar comprometido
com a produção de abandono ou com, simplesmente, o policiamento dos abandonados
da e na vida, a fim de que continuem abandonados, jogados à própria sorte, para
que alguns poucos sejam, de forma ao mesmo tempo ilusória e real, protegidos de
nosso comum abandono.
Uma coisa é,
pois, certa: a polícia para os abandonados é outra totalmente diversa da que
diz respeito à política dos abandonados: a primeira ao mesmo tempo produz e
condiciona o abandonado ao abandono absoluto, miserável, vil, mortal; a
segunda, por sua vez, é o exercício sem fim de igualdade que o comum
abandonado, todos nós, produz, no cotidiano, para proteger-nos do abandono,
cuidando-nos uns dos outros. A questão de base, para tudo, é, portanto: tal ou
qual situação é uma polícia para os abandonados ou uma política dos
abandonados? É para produzir igualdade para todos ou para excluir os
abandonados da Terra, o povo, do comum direito à igualdade, em todas as
dimensões da vida?
Considerando
estas questões, claro está que o policial reality
show policialmente denominado como Julgamento do Mensalão,
realizado pelos ministros do Supremo Tribunal Federal, STF, sob os holofotes
não menos policiais de nosso policialesco sistema midiático, está comprometido
até os miolos com a polícia para os abandonados e não com uma justiça ou
política jurídica para os abandonados do Brasil, o seu povo, assim como para os
abandonados da América Latina, pois o Brasil é um país estratégico no nosso
continente, razão pela qual ora é chamado a exercer uma função de polícia ou de
traição para os povos latino-americanos, ora solicitado a inscrever-se como ponta
de lança de efetiva política de solidariedade e cooperação de nosso comum
abandono.
Um
pacote policial imperialista
Dependendo do
rumo do pêndulo Brasil, se policial ou político, no contexto latino-americano,
a história nossa será uma e não outra, sempre tendo os Estados Unidos como a
esfinge policial que nos assombram, porque o imperialismo americano exerce a
função de ser a polícia para e a serviço de todas as polícias do mundo. Os
Estados Unidos são a polícia, portanto, das polícias, uma espécie de hiper-polícia
de e para todas as polícias de abandono dos abandonados. É nesse sentido que é
possível falar em imperialismo econômico, cultural, educacional,
epistemológico, comportamental, jurídico, midiático. A função de polícia do
imperialismo americano, pois, é a de gerir e ao mesmo tempo fazer-se como o
epicentro sísmico de todas as polícias de e no mundo, abraçando mortalmente,
para não dizer policialmente o mundo todo, através de uma geopolítica mundial
de abandono dos abandonados.
É precisamente
em relação à função hiper-policial do imperialismo americano que é preciso, em
meu entendimento, analisar o policial caso jurídico e midiático do chamado
Mensalão do PT. O que está em jogo no Mensalão, portanto, é muito simples:
golpe policial jurídico e midiático a serviço do imperialismo, entendido como a
onipresente polícia dos abandonados do mundo. É porque o PT não se submeteu
totalmente à polícia americana, seja no que diz respeito à política para o povo
brasileiro, seja no que diz respeito à política para o povo latino-americano,
que a polícia ao mesmo tempo midiática e jurídica vem policialmente cumprir a
função de soldado raso do hiper-policiamento imperial, com um único propósito
(que nada tem a ver com justiça, antes pelo contrário), a saber: ratificar o
trágico abandono histórico do povo latino-americano.
Os recentes
golpes parlamentares, jurídicos e midiáticos ocorridos em Honduras, e mais
proximamente no Paraguai, certamente são parte de um pacote policial
imperialista com vistas a um único objetivo: sabotar policialmente as
experimentações democráticas de diversos países latino-americanos, os quais,
após as tempestades policiais das polícias neoliberais da década de 90,
iniciaram uma reviravolta política de demanda de proteção de nosso abandono comum;
demanda levada a cabo por povos de países como Cuba, Venezuela, Bolívia,
Argentina, Equador, Brasil, Uruguai, embora mais nuns que em outros.
Capataz
da hiper-polícia imperial
É essa multidão
política de proteção do abandono dos povos da América do Sul que a
hiper-polícia do imperialismo americano pretende a todo custo reverter,
convocando, para tal, principalmente o policial poder judiciário e o não menos
policial sistema policial de comunicação do Brasil (mas não apenas), ambos
policialmente delineados e equipados para funcionar como baluarte contra os
abandonados povos latino-americanos, a partir do abandono do povo brasileiro. O
que está em jogo com o policial jurídico e midiático Mensalão do PT é,
portanto, o onipresente policiamento imperial, em nome do qual se monta o
espetáculo do tribunal de exceção, como regra geral, contra qualquer saída
política para os abandonados brasileiros e latino-americanos.
O Mensalão não
é a primeira e nem será a última golpista estratégia policial dos corruptos e
policiais poderes midiático e jurídico do Brasil. A única forma de se opor a
esse golpismo policialesco permanente contra o povo brasileiro é a
implementação inadiável de uma verdadeira democracia jurídica e midiática em
ambos os setores; democracia cujo principal objetivo é o de extirpar a função
policial desses e demais poderes, a fim de que cumpram o papel histórico de
fazerem-se como, respectivamente, os meios de comunicação e os meios jurídicos
de um país que de forma alguma deve admitir o abandono de suas vidas secas, a
retirarem-se tragicamente a favor de seu próprio abandono midiático, jurídico,
cultural e econômico.
Infelizmente, a
propósito da urgência urgentíssima de uma política midiática e jurídica para o
Brasil, é preciso constatar que o ex-presidente Lula não teve coragem de
realizá-las, embora tenha sido e continua sendo o suspeito por excelência da
função policial desses dois poderes, principalmente a dos meios de comunicação
de massa contra antes de tudo a popularidade que Lula carrega consigo, razão
pela qual a polícia jurídica, parlamentar, financeira e midiática contra o Lula
é antes de tudo contra o povo brasileiro, polícias que a presidente Dilma
Rousseff está obrigada, em nome das vidas secas do Brasil e da América Latina,
a se opor, através das jurídicas e midiáticas políticas dos e para os povos.
Se alguma coisa
em perspectiva política fica evidente com o policial Mensalão contra o PT é a
constatação de que a polícia midiática e a polícia jurídica estão de mãos dadas
no Brasil. Ambas deram-se as mãos com o objetivo, não nos iludamos, de caçar e
aprisionar as bruxas da política dos povos, certamente a serviço da
polícia-mor, o imperialismo americano, contra qualquer tentativa de justiça
para os povos da América Latina.
O futuro
imediato da América Latina aguarda, portanto, politicamente, a coragem
necessária do governo do PT para reformar democraticamente o poder jurídico e
midiático brasileiro, contribuindo decididamente para que ambos estejam a
serviço de nossos abandonados povos, antes que a polícia-mor, o imperialismo
americano, imponha-nos novamente o sertão inóspito, injusto e incomunicável,
como único distópico horizonte para nossas secas vidas abandonadas, através,
por exemplo, do retorno do partido da polícia-mor, o PSDB, ou um outro que o
substitua para a covarde, traída, comprada e submetida condição de capataz da
hiper-polícia imperial.
(Luis Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta
e professor de Teoria da Literatura na UFES)
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