segunda-feira, 29 de outubro de 2012

LICENÇA PARA CONTAR: TATIANA BRIOSCHI




TATIANA BRIOSCHI, poeta e contista, é capixaba de coração e escreve desde os 10 anos. É formada em comunicação pela UFES e representou o Brasil em Tóquio no concurso cultural Miss e Mister Universitários Internacional, ganhando o concurso. Participou do livro da SECUL "Edital de Contos" e lançou os livros "Vila Velha Mundo" e “Se os desse a você - poemas” (virtual), assim como dois concursos de contos pela internet. Tem incursões em várias áreas, como teatro, cinema e dança, além de ter vários poemas seus publicados no DIO-ES. Sua temática tende a observar os fatos do cotidiano, a realidade social.  Confira, abaixo, a terceira parte do conto “A enseada e a vendedora”:  

A ENSEADA E A VENDEDORA (3ª parte)

[...]

Decidi então ensinar português a um grupo de cinco pessoas utilizando uma salinha ao lado do depósito, que fora o cheiro de podre deu um bom lugar para as aulas, e assim fiquei por vários meses mas ao chegar no adjunto adverbial já estava entediada e então comprei passagem ferroviária só de ida para Constantinopla (que na estação descobri havia mudado de nome para Istambul) e pus-me a caminho. Havia comprado assento de segunda classe e lá pude observar as inúmeras brigas de casais por motivos banais, o que  causou-me pena, pedi licença e intrometi-me nas brigas tomando partido hora de um, outra de outro, até que os casais já vinham naturalmente a mim antes de brigarem efetivamente para pedir-me conselhos. Estes aconselhamentos matrimoniais continuaram por toda a viagem e combinei com o bilheteiro para trazer outros casais da primeira classe para aconselhamentos também. 

O  bilheteiro, embora meio lento, era simpático, e começamos a flertar involuntariamente até que nosso romance tornou-se inevitável e terminei a viagem entre beijos e abraços. Em Istambul vivi com o bilheteiro, que trocou de emprego para  ficarmos juntos, por felizes quatro meses e meio, tempo suficiente para descobrir nossa incompatibilidade de gênios e nos separamos amigavelmente, tão amigavelmente que ele comprou-me um bilhete até Veneza. Parti acenando um lenço branco entre a fumaça da estação e deixei-o lá em pé com o boné no peito o que causou-me tamanho impacto que tomei doses cavalares de tranqüilizante para morrer. Acordei e fui para a Piaza San Marco dar milho e posar como suporte de pombos - e cocô de pombo - para os turistas.  Porém os excrementos eram tão ácidos que afetaram minha saúde e acabaram com minha fonte de renda e forçou-me a buscar outra saída. Ofereci-me em uma papelaria chique como revisora da carta fiorentina, meu portfólio corroborou muito devo dizer, no que fui aceita como trabalhadora autônoma por tempo provisório. Sentei-me na prancheta exposta para venda e trabalhei arduamente na carta e transformei as florzinhas azuis sem graça em orquídeas amarelas que combinaram perfeitamente com os delicados traços e os dourados, além de acrescentar alguns toques de bromélias laranja bem alegres só que em tamanho reduzido para ficar proporcional, o que na minha opinião ficou perfeito, na minha, porque o casal dono da papelaria achou horrível e exótico demais, o que obviamente discordo com todas as minhas forças, mas como eu era a parte fraca no acordo reuni meu portfólio e fui-me embora não sem antes reclamar na secretaria italiana do trabalho e exigir indenização por assédio moral. Como fiquei na rua da amargura não tive outra alternativa a não ser ficar nela e tentar sobreviver, o que foi possível vendendo balas de hortelã nos pontos de travestis brasileiros. 

Quando juntei algumas liras comprei uma passagem no expresso do oriente e embarquei na primeira classe, sendo recebida por um funcionário uniformizado e cheio de botões dourados, muito simpático por sinal, que durante toda a viagem serviu-me lautas refeições e deliciosas bebidas de frutas, se bem que gostaria de ter bebido umas caipirinhas mas desisti ao não encontrar cachaça mineira e açúcar de cana. Entre paisagens, refeições à luz de velas e passeios interessantes cheguei a Londres em um lindo dia de sol. Após correr um pouco no Hyde Park procurei emprego numa loja de chapéus e luvas no centro da cidade e comecei imediatamente. Parecia que nasci para a coisa pois nunca a loja vendeu tantos chapéus e luvas em sua vida de duzentos e dez anos o que
resultou em um quadro com minha foto como funcionária do mês, enchendo-me de orgulho. Porém eu não parava de espirrar e fui ao médico, que diagnosticou alergia ao feltro usado nas mercadorias, obrigando-me a pedir demissão  contrariada. Pelo menos recebi um bom dinheiro pela rescisão do contrato de trabalho e adquiri via internet um bilhete eletrônico para o Suriname, onde cheguei animada, hospedando-me no spa das especiarias que fazia tratamentos à base de pimenta, noz moscada, açafrão, erva-doce, cravo, tomilho, além de mel, chocolate e aveia. Minha pele ficou maravilhosa e comi do bom e do  melhor com poucas calorias e pouca gordura. Com os cabelos cortados e tratados, as unhas manicuradas, a pele macia e roupas de algodão cru saímos o pessoal do spa em grupo para o bar mais quente da cidade a fim de vermos e sermos vistos. Saboreando uma espiga de milho quase engasguei ao ver atrás de nossa mesa um homem perfeito, charmoso, bonito, e inteligente, como pude averiguar quando o pessoal da nossa mesa chamou-o para juntar-se a nós. Após conversarmos umas três horas ininterruptas estava cada vez mais admirada com aquele cara que tinha gostos tão familiares, jeito tão confortável. E quando olhei nos seus óculos escuros, que ele mesmo vendia, vi meu reflexo e com ele hasteei a bandeira da escola onde trabalho, uma acadêmica em Vila Velha como sempre quis.

Veja a primeira parte do conto “A enseada e a vendedora” no link: http://outros300.blogspot.com.br/2012/10/licenca-para-contar-tatiana-brioschi.html

E a segunda parte no link: http://outros300.blogspot.com.br/2012/10/licenca-para-contar-tatiana-brioschi_28.html

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