TATIANA BRIOSCHI, poeta e contista, é capixaba de coração e escreve
desde os 10 anos. É formada em comunicação pela UFES e representou o
Brasil em Tóquio no concurso cultural Miss e Mister Universitários
Internacional, ganhando o concurso. Participou do livro da SECUL "Edital
de Contos" e lançou os livros "Vila Velha Mundo" e “Se os
desse a você - poemas” (virtual), assim como dois concursos de contos pela
internet. Tem incursões em várias áreas, como teatro, cinema e dança, além
de ter vários poemas seus publicados no DIO-ES. Sua temática tende a
observar os fatos do cotidiano, a realidade social. Confira, abaixo, a segunda
parte do conto “A enseada e a vendedora”:
A ENSEADA E A VENDEDORA
(2ª parte)
[...]
Entrei para a
primeira aula e encontrei na sala de dez alunos mais dois brasileiros, um rapaz
e uma moça dos estados de Mato Grosso e Piauí que foram muito gentis comigo,
tanto ao fazermos o trabalho da aula, uma dissertação sobre o sistema
brasileiro de criação de abelhas, quanto ao passearmos depois da aula pelas
ruas alemãs limpas e bem freqüentadas por apreciadores de chucrute. Herta e
Franz, os brasileiros, convidaram-me para ficar hospedada com eles em um
alojamento bastante arejado e limpo na
universidade de Berlim, ao que eu aceitei de muita boa vontade principalmente por ser de graça. A
universidade tinha um lindo jardim na frente e um refeitório branco muito
simpático com bandejão a preço bem popular. Senti na universidade uma presença
latina bem interessante com a realização
de um festival de música e cultura brasileiras organizado pelo departamento de jornalismo. Franz, Herta e eu
fomos convidados para assistirmos à
mostra brasileira, o que fizemos na quarta à noite depois de irmos ao nosso curso,
e ao fim de "Deus e o Diabo na Terra do Sol" de Glauber Rocha fomos
convidados para a mesa redonda de discussão sobre o filme. Não sei se por
timidez ou falta mesmo do que falar, somente eu, dos brasileiros, comentei a
fundo as características do filme, causando grande atenção por parte da
platéia, o que resultou em uma grande ovação ao final com duração de cinco
minutos. No calor da ovação sra Ester, organizadora da mostra, chamou-me a um
canto e convidou-me a dirigir um filme alemão produzido pela universidade, ao
que eu rapidamente aceitei. Disse então a Franz e Herta que não faria mais a
pós e telefonei no dia seguinte à escola adiando meu curso para o ano seguinte.
Eles foram muito compreensivos e parabenizaram-me por rodar um filme em sua
terra, tarefa que começou já no dia seguinte, porém era um filme alemão rodado
não na Alemanha mas sim na África, e fomos toda a equipe para Marrakesh,
onde filmamos a primeira cena na grande
praça cheia de vendedores de comida, de água, encantadores de serpente e
artistas de circo. Naquela balbúrdia misturada de árabe com francês e espanhol
filmamos algumas cenas importantes do filme onde o casal protagonista teve uma
briga por causa da religião, onde a moça queria ser muçulmana porém não usar o
véu e o marido não a apoiava. Depois da filmagem fomos todos para o hotel onde comemos cuscuz marroquino e
tomamos um delicioso chá de hortelã para
ganhar forças, o que foi muito bem vindo pois dia seguinte viajamos mais ao sul
e chegamos até a cadeia de montanhas Atlas, linha demarcatória da parte mais fértil do país com o começo do
deserto do Saara. No Atlas filmamos cenas de camelos, berberes, tendas e oásis
para a parte digamos "mil e uma noites" do filme. As cenas ficaram
muito boas e na edição mantive várias delas. Após dois meses de filmagens
conseguimos finalmente dar o filme por encerrado. Voltamos a Berlim e demos os
retoques finais em estúdio e na ilha de edição inserindo inclusive alguns
efeitos especiais. Por fim fechamos o título em "Os veios dos véus" e
o mostramos em avant première no maior cinema de Berlim, com grande sucesso. Após uma semana de merecido descanso
voltei às aulas da pós e junto com meus
amigos Herta e Franz começamos a fazer uma interessante pesquisa sobre a
aceitação histórica de pequenos delitos na formação de uma sociedade altamente
corrupta quando recebi um telefonema da sra Ester feliz da vida ao dar-me a
notícia que nosso filme foi indicado ao Oscar de melhor filme, melhor figurino
e melhor roteiro original. Felicíssimos ficamos toda a equipe e os produtores da universidade e seguimos todos
em comboio para a festa em Hollywood. Após carimbar minhas mãos e assinar meu
nome na calçada da fama nos preparamos e seguimos lindamente para o teatro, onde
tirei muitas fotos no tapete vermelho, fotógrafos gritavam meu nome e
jornalistas acotovelavam-se por uma pequena pose. Ficamos a praticamente três
passos do palco e efetivamente nós os atravessamos quando "Os veios dos
véus" foi chamado para receber o
Oscar pelo melhor figurino. Toda a equipe exultou e em meu discurso agradeci o
trabalho incansável das figurinistas que fizeram um guarda-roupa baseado na
história do filme, nos personagens, na estação do ano, na moda do Marrocos, nos
tecidos ecológicos e nos signos nos atores, além de gritar o nome do Brasil e
do Espírito Santo. Recebi muitos cumprimentos na festa dos ganhadores e ao
enfiar uma empada inteira na boca fui apresentada a taicoons chineses e
japoneses muito formais em seus ternos azul-petróleo e maneiras orientais. Após
alguns salamaleques, ou melhor, após salam ale cum, os taicoons elogiaram muito o figurino do
filme e convidaram-me a visitar sua fábrica de seda na China, convite
imediatamente aceito. Após a noitada maravilhosa acordei num banco da praça de
Los Angeles próxima de uma estátua viva a olhar-me com curiosidade, coisa que
irritou-me deveras, e xinguei-lhe de filho da puta em alemão com o efeito do
álcool ainda em meu sangue, o que serviu
para
acordar minha alma sonolenta e impelir-me a tomar um banho no hotel em que estávamos
hospedados. Após uma despedida chorosa peguei meu vôo para Pequim onde após um
dia inteiro de viagem os taicoons já aguardavam-me para a visita prometida na
bonita fábrica, situada a vinte minutos do centro da cidade em uma área verde muito arejada cheia
de árvores chinesas e alguns bambus. A fábrica possuia grande área com
amoreiras e panelonas para matar as pobres lagartas e poder desenrolar o fio do
casulo, lindo, lustroso, prontinho para receber lindas cores em tecidos
enormes. Em meu quarto no hotel Flor de Lótus eu sonhava freqüentemente com a
fabricação da seda, com as lagartas
mortas em prol de nossa vestimenta e grande culpa surgia em minha mente, tanto
que bati longos papos com a dona do hotel, uma chinesa simpática de longos cabelos em coque e
pequenos pés deformados pela mãe para que não crescessem. Ela contou-me algumas
lendas sobre batalhas e guerreiros e
moçoilas vestidas em seda vermelha, e horas ficávamos a papear na cozinha. A
senhoria conhecia muito do processo da fábrica e decidiu ensinar-me alguns segredos muito bem
guardados para fabricar bons tecidos, o
que fez-me uma especialista em muito pouco tempo, pelo menos na teoria, e
fez-me pensar em ficar seis meses em Pequim para aprender mais e trabalhar na
fábrica. Dois dias depois disto decidi ir embora a acompanhar um carregamento
de fios no qual participei ativamente em meus olhos e minha mente, carregamento
que sairia do país pela rota da seda via trem. Contentes saimos de Pequim em
carros até a estação ferroviária a acompanhar o carregamento que foi colocado
na parte cargueira sendo que nós seguiríamos de primeira classe, não sem antes apresentar, carimbar e assinar toda
a papelada necessária para seguir viagem. Partimos junto com as nuvens e
pegamos muita chuva no caminho para Dunhuang onde fiz questão de saltar e
visitar as cavernas Mogao e o Lago da Lua.
Continuamos o trajeto até Turban onde almoçamos no Pagode Sugong e lanchamos nas ruínas da cidade Jiaohe. Fiquei
satisfeita por chegar a Urumuqi pois tinha grande amiga a morar lá, perto do
Lago do Céu, onde passeamos, tomamos chá e colocamos a conversa em dia pois
fazia anos que não nos víamos. Ela abriu seu coração, contando-me sobre o
marido machista, as filhas ausentes devido ao trabalho com os maridos e sogras,
e a falta de dinheiro. Trocamos queixas
de nossas vidas mal-arrumadas e eu disse adeus, afinal precisava seguir minha
rota cadenciada, rota existente a tantos anos, que entrou para a história. Às vezes eu olhava pela janela e imaginava
tantas doenças, mortes, dificuldades que seguiram os carregadores da seda para
levar sua mercadoria até a Europa, mas qual trabalho é fácil, afinal? nunca vi
algum. desde plantar alface e esperar pela chuva até escrever milhares de
linhas de programas de computador, para tudo precisamos penar, claro que há os
momentos de refresco, e eu pensava nesses refrescos do trabalho quando, no
Turqueministão, vi uma passeata em Ashgabat e desci na estação seguinte. Era
uma passeata por melhores serviços públicos e eu imediatamente troquei meu
relógio por uma bandeira nacional e segui os manifestantes por quase duas
horas. Terminamos a passeata em frente à sede do governo gritando palavras de
incentivo, claro que eu imitava somente a última palavra de cada frase aos
berros, sem saber o significado, mas produzi
grande efeito, a julgar pelos cumprimentos que recebi ao final da
passeata dos que pareciam ser os
organizadores. Eram muito simpáticos e convidaram-me, em esperanto, para fazer
parte da comissão que negociaria com o presidente, e eu modestamente aceitei juntar-me à
força-tarefa, que consistia em um grupo de dois homens e uma mulher prontos a
estudarem maneiras melhores de lidar com os serviços públicos, praticamente
decadentes. Hospedei-me no melhor hotel da cidade, que possuia um banheiro por
cada andar , e reunia-me todos os dias pela manhã com a comissão, trabalhávamos
até ao meio-dia e á tarde íamos a campo pesquisar o que a população gostaria de
ter em seu governo. E tanto fiz estas pesquisas, em esperanto, que o
encarregado da comissão conversou com o
líderes do partido e convidaram-me para ser ministra dos melhoramentos nacionais, cargo criado
especialmente para mim, o que produziu em meu ego, devo admitir, um salto
extraordinário. Logo procurei e consegui um gabinete no palácio com mesas,
computador e telefone e pus-me a trabalhar em prol do controle da inflação,
todos os países a têm, e fim das mordomias administrativas do colarinho branco,
um trabalho hercúleo que trouxe-me antipatias compreensíveis dos culpados,
embora claro também trouxesse apoio dos honestos, que infelizmente não
conseguiram impedir que em dois dias no cargo de ministra eu fosse deposta e
deportada para o Quirguistão onde achei-me só e triste pelas vicissitudes da
vida, mas sequei as lágrimas com as costas da mão e fui passear pelo mercado de
alimentos de Bishkek. Lá entre cereais e ervas fiquei íntima dos vendedores,
pessoas sofridas, que perguntavam-me sobre o Brasil à toda hora.
[...]
Veja a primeira parte do conto “A enseada e a vendedora” no link: http://outros300.blogspot.com.br/2012/10/licenca-para-contar-tatiana-brioschi.html
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