domingo, 28 de outubro de 2012

LICENÇA PARA CONTAR: TATIANA BRIOSCHI



TATIANA BRIOSCHI, poeta e contista, é capixaba de coração e escreve desde os 10 anos. É formada em comunicação pela UFES e representou o Brasil em Tóquio no concurso cultural Miss e Mister Universitários Internacional, ganhando o concurso. Participou do livro da SECUL "Edital de Contos" e lançou os livros "Vila Velha Mundo" e “Se os desse a você - poemas” (virtual), assim como dois concursos de contos pela internet. Tem incursões em várias áreas, como teatro, cinema e dança, além de ter vários poemas seus publicados no DIO-ES. Sua temática tende a observar os fatos do cotidiano, a realidade social.  Confira, abaixo, a segunda parte do conto “A enseada e a vendedora”:  

A ENSEADA E A VENDEDORA (2ª parte)

[...]

Entrei para a primeira aula e encontrei na sala de dez alunos mais dois brasileiros, um rapaz e uma moça dos estados de Mato Grosso e Piauí que foram muito gentis comigo, tanto ao fazermos o trabalho da aula, uma dissertação sobre o sistema brasileiro de criação de abelhas, quanto ao passearmos depois da aula pelas ruas alemãs limpas e bem freqüentadas por apreciadores de chucrute. Herta e Franz, os brasileiros, convidaram-me para ficar hospedada com eles em um alojamento bastante  arejado e limpo na universidade de Berlim, ao que eu aceitei de muita boa  vontade principalmente por ser de graça. A universidade tinha um lindo jardim na frente e um refeitório branco muito simpático com bandejão a preço bem popular. Senti na universidade uma presença latina bem interessante com a  realização de um festival de música e cultura brasileiras organizado pelo  departamento de jornalismo. Franz, Herta e eu fomos convidados para  assistirmos à mostra brasileira, o que fizemos na quarta à noite depois de irmos ao nosso curso, e ao fim de "Deus e o Diabo na Terra do Sol" de Glauber Rocha fomos convidados para a mesa redonda de discussão sobre o filme. Não sei se por timidez ou falta mesmo do que falar, somente eu, dos brasileiros, comentei a fundo as características do filme, causando grande atenção por parte da platéia, o que resultou em uma grande ovação ao final com duração de cinco minutos. No calor da ovação sra Ester, organizadora da mostra, chamou-me a um canto e convidou-me a dirigir um filme alemão produzido pela universidade, ao que eu rapidamente aceitei. Disse então a Franz e Herta que não faria mais a pós e telefonei no dia seguinte à escola adiando meu curso para o ano seguinte. Eles foram muito compreensivos e parabenizaram-me por rodar um filme em sua terra, tarefa que começou já no dia seguinte, porém era um filme alemão rodado não na Alemanha mas sim na África, e fomos toda a equipe para Marrakesh, onde  filmamos a primeira cena na grande praça cheia de vendedores de comida, de água, encantadores de serpente e artistas de circo. Naquela balbúrdia misturada de árabe com francês e espanhol filmamos algumas cenas importantes do filme onde o casal protagonista teve uma briga por causa da religião, onde a moça queria ser muçulmana porém não usar o véu e o marido não a apoiava. Depois da filmagem fomos todos  para o hotel onde comemos cuscuz marroquino e tomamos um delicioso chá de  hortelã para ganhar forças, o que foi muito bem vindo pois dia seguinte viajamos mais ao sul e chegamos até a cadeia de montanhas Atlas, linha demarcatória da  parte mais fértil do país com o começo do deserto do Saara. No Atlas filmamos cenas de camelos, berberes, tendas e oásis para a parte digamos "mil e uma noites" do filme. As cenas ficaram muito boas e na edição mantive várias delas. Após dois meses de filmagens conseguimos finalmente dar o filme por encerrado. Voltamos a Berlim e demos os retoques finais em estúdio e na ilha de edição inserindo inclusive alguns efeitos especiais. Por fim fechamos o título em "Os veios dos véus" e o mostramos em avant première no maior cinema de Berlim, com grande  sucesso. Após uma semana de merecido descanso voltei às aulas da pós e junto com  meus amigos Herta e Franz começamos a fazer uma interessante pesquisa sobre a aceitação histórica de pequenos delitos na formação de uma sociedade altamente corrupta quando recebi um telefonema da sra Ester feliz da vida ao dar-me a notícia que nosso filme foi indicado ao Oscar de melhor filme, melhor figurino e melhor roteiro original. Felicíssimos ficamos toda a equipe e os  produtores da universidade e seguimos todos em comboio para a festa em Hollywood. Após carimbar minhas mãos e assinar meu nome na calçada da fama nos preparamos e seguimos lindamente para o teatro, onde tirei muitas fotos no tapete vermelho, fotógrafos gritavam meu nome e jornalistas acotovelavam-se por uma pequena pose. Ficamos a praticamente três passos do palco e efetivamente nós os atravessamos quando "Os veios dos véus"  foi chamado para receber o Oscar pelo melhor figurino. Toda a equipe exultou e em meu discurso agradeci o trabalho incansável das figurinistas que fizeram um guarda-roupa baseado na história do filme, nos personagens, na estação do ano, na moda do Marrocos, nos tecidos ecológicos e nos signos nos atores, além de gritar o nome do Brasil e do Espírito Santo. Recebi muitos cumprimentos na festa dos ganhadores e ao enfiar uma empada inteira na boca fui apresentada a taicoons chineses e japoneses muito formais em seus ternos azul-petróleo e maneiras orientais. Após alguns salamaleques, ou melhor, após salam ale cum,  os taicoons elogiaram muito o figurino do filme e convidaram-me a visitar sua fábrica de seda na China, convite imediatamente aceito. Após a noitada maravilhosa acordei num banco da praça de Los Angeles próxima de uma estátua viva a olhar-me com curiosidade, coisa que irritou-me deveras, e xinguei-lhe de filho da puta em alemão com o efeito do álcool ainda em meu sangue, o que serviu
para acordar minha alma sonolenta e impelir-me a tomar um banho no hotel em que estávamos hospedados. Após uma despedida chorosa peguei meu vôo para Pequim onde após um dia inteiro de viagem os taicoons já aguardavam-me para a visita prometida na bonita fábrica, situada a vinte minutos do centro da  cidade em uma área verde muito arejada cheia de árvores chinesas e alguns bambus. A fábrica possuia grande área com amoreiras e panelonas para matar as pobres lagartas e poder desenrolar o fio do casulo, lindo, lustroso, prontinho para receber lindas cores em tecidos enormes. Em meu quarto no hotel Flor de Lótus eu sonhava freqüentemente com a fabricação da seda, com as  lagartas mortas em prol de nossa vestimenta e grande culpa surgia em minha mente, tanto que bati longos papos com a dona do hotel, uma chinesa  simpática de longos cabelos em coque e pequenos pés deformados pela mãe para que não crescessem. Ela contou-me algumas lendas sobre batalhas e  guerreiros e moçoilas vestidas em seda vermelha, e horas ficávamos a papear na cozinha. A senhoria conhecia muito do processo da fábrica e decidiu  ensinar-me alguns segredos muito bem guardados para fabricar bons tecidos,  o que fez-me uma especialista em muito pouco tempo, pelo menos na teoria, e fez-me pensar em ficar seis meses em Pequim para aprender mais e trabalhar na fábrica. Dois dias depois disto decidi ir embora a acompanhar um carregamento de fios no qual participei ativamente em meus olhos e minha mente, carregamento que sairia do país pela rota da seda via trem. Contentes saimos de Pequim em carros até a estação ferroviária a acompanhar o carregamento que foi colocado na parte cargueira sendo que nós seguiríamos de primeira classe, não  sem antes apresentar, carimbar e assinar toda a papelada necessária para seguir viagem. Partimos junto com as nuvens e pegamos muita chuva no caminho para Dunhuang onde fiz questão de saltar e visitar as cavernas Mogao e o Lago da Lua.  Continuamos o trajeto até Turban onde almoçamos no Pagode Sugong e  lanchamos nas ruínas da cidade Jiaohe. Fiquei satisfeita por chegar a Urumuqi pois tinha grande amiga a morar lá, perto do Lago do Céu, onde passeamos, tomamos chá e colocamos a conversa em dia pois fazia anos que não nos víamos. Ela abriu seu coração, contando-me sobre o marido machista, as filhas ausentes devido ao trabalho com os maridos e sogras, e a falta de dinheiro. Trocamos  queixas de nossas vidas mal-arrumadas e eu disse adeus, afinal precisava seguir minha rota cadenciada, rota existente a tantos anos, que entrou para a história.  Às vezes eu olhava pela janela e imaginava tantas doenças, mortes, dificuldades que seguiram os carregadores da seda para levar sua mercadoria até a Europa, mas qual trabalho é fácil, afinal? nunca vi algum. desde plantar alface e esperar pela chuva até escrever milhares de linhas de programas de computador, para tudo precisamos penar, claro que há os momentos de refresco, e eu pensava nesses refrescos do trabalho quando, no Turqueministão, vi uma passeata em Ashgabat e desci na estação seguinte. Era uma passeata por melhores serviços públicos e eu imediatamente troquei meu relógio por uma bandeira nacional e segui os manifestantes por quase duas horas. Terminamos a passeata em frente à sede do governo gritando palavras de incentivo, claro que eu imitava somente a última palavra de cada frase aos berros, sem saber o significado, mas produzi  grande efeito, a julgar pelos cumprimentos que recebi ao final da passeata  dos que pareciam ser os organizadores. Eram muito simpáticos e convidaram-me, em esperanto, para fazer parte da comissão que negociaria com o presidente,  e eu modestamente aceitei juntar-me à força-tarefa, que consistia em um grupo de dois homens e uma mulher prontos a estudarem maneiras melhores de lidar com os serviços públicos, praticamente decadentes. Hospedei-me no melhor hotel da cidade, que possuia um banheiro por cada andar , e reunia-me todos os dias pela manhã com a comissão, trabalhávamos até ao meio-dia e á tarde íamos a campo pesquisar o que a população gostaria de ter em seu governo. E tanto fiz estas pesquisas, em esperanto, que o encarregado da comissão  conversou com o líderes do partido e convidaram-me para ser ministra dos  melhoramentos nacionais, cargo criado especialmente para mim, o que produziu em meu ego, devo admitir, um salto extraordinário. Logo procurei e consegui um gabinete no palácio com mesas, computador e telefone e pus-me a trabalhar em prol do controle da inflação, todos os países a têm, e fim das mordomias administrativas do colarinho branco, um trabalho hercúleo que trouxe-me antipatias compreensíveis dos culpados, embora claro também trouxesse apoio dos honestos, que infelizmente não conseguiram impedir que em dois dias no cargo de ministra eu fosse deposta e deportada para o Quirguistão onde achei-me só e triste pelas vicissitudes da vida, mas sequei as lágrimas com as costas da mão e fui passear pelo mercado de alimentos de Bishkek. Lá entre cereais e ervas fiquei íntima dos vendedores, pessoas sofridas, que perguntavam-me sobre o Brasil à toda hora.

[...]

Veja a primeira parte do conto “A enseada e a vendedora” no link: http://outros300.blogspot.com.br/2012/10/licenca-para-contar-tatiana-brioschi.html


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