TATIANA BRIOSCHI, poeta e contista, é capixaba de coração e escreve desde
os 10 anos. É formada em comunicação pela UFES e representou o Brasil em
Tóquio no concurso cultural Miss e Mister Universitários Internacional, ganhando
o concurso. Participou do livro da SECUL "Edital de Contos" e lançou
os livros "Vila Velha Mundo" e “Se os desse a você - poemas”
(virtual), assim como dois concursos de contos pela internet. Tem incursões em
várias áreas, como teatro, cinema e dança, além de ter vários poemas seus
publicados no DIO-ES. Sua temática tende a observar os fatos do cotidiano,
a realidade social. Confira, abaixo, a primeira parte do conto “A enseada
e a vendedora” (o conto será dividido em três, dado seu tamanho e proposta do
blog. As outras partes serão publicadas no domingo e na segunda):
A ENSEADA E A VENDEDORA
Pisquei os
olhos e acordei nesta enseada, eu, que ontem era professora de uma importante
escola canela-verde, hoje estou aqui, nesta enseada vendendo óculos de sol.
Ainda bem que esta enseada é procurada por turistas de todo o mundo por suas
qualidades excepcionais de revelar o futuro através de visões que visitam os
banhistas quando eles menos esperam, quando estão bem quietos perto do mar,
esticados na canga tomando sol e lá vem ela, a visão ataca, mostrando o futuro
do felizardo se ele tivesse tomado outro rumo na vida. E não são poucos os que
procuram a praia para tentar ter a sorte de serem premiados com a visão. Meus óculos escuros
são perfeitos para estas pessoas porque possuem lentes duráveis e que não
prejudicam a vista, diferentes desses que existem na praça cheios de defeitos,
que quebram à toa e que não protegem as retinas.
No meu
tabuleiro de óculos tenho sempre vinte peças à exposição para meus clientes e
na minha bolsa tenho mais dez de reserva, todos oferecidos para mim pelo grande
exportador de mercadorias visconde de São Torquato, amigo meu de longa data,
tão longa que ele ainda era marquês e fabricava bolas de madeira para os
jogadores da elite jogarem bocha. Ele e eu sempre fomos apoiadores do esporte,
afinal, para que serve a aristocracia? ser mantenedor das artes e dos esportes,
ser um mecenas já é tradição e não poderíamos fugir à regra. O visconde é muito simpático e toda
semana vem até aqui trazer suas mercadorias para nós, eu e minha amiga Alice,
vendermos. Alice teve inclusive uma caída pelo visconde mas eu chamei-a perto
da castanheira e tive uma conversa muito
séria com ela e disse que não seria possível misturar amor com negócios,
poderia atrapalhar, e ela pareceu entender pois nunca mais falou no assunto. Eu
achei ótimo e dei um jeito de apresentá-la ao sr. Ângelo, também da
aristocracia vilavelhense, conhecido como o rei da tapioca. Ele e seu irmão têm
uma barraca de tapiocas recheadas num ótimo lugar no calçadão, lugar privilegiado perto da parte mais larga e
embaixo de uma castanheira. Na verdade eu conheço mais o irmão dele , o
príncipe Anderson, que já comprou comigo um par de óculos dos mais caros, o que
mostrou-me de pronto suas posses. Claro
que comentei isto com Alice para preparar terreno antes de apresentá-la ao rei,
e ela ficou logo muito animada, tão animada que marcou sair com sr. Ângelo,
disse que iria comer um churrasquinho de camarão na barraca do Edu. Eu a
preveni que se o rei passasse dos limites, se quisesse passar a mão no colo dela
ou a língua no ouvido, sinais claros de abuso, ela deveria correr e tomar o
primeiro ônibus para casa.
Depois
contou-me que tudo correu às mil maravilhas e ele foi muito cavalheiro o que me
deixou muito feliz, e pessoas felizes vendem mais, o que provei ser verdade
vendendo dois pares de óculos para dois
turistas que vieram pela primeira vez à Enseada. Estavam perdidos mas
depois expliquei-lhes que não era em todos os pontos da Praia da Costa que as pessoas tinham visões, que somente a parte
entre a pedra da sereia e o clube Libanês oferecia propriedades mágicas, que a
melhor hora do dia era entre as dez e as onze horas da manhã. Eles ficaram tão
satisfeitos com minha ajuda que
pagaram-me dez reais pelas dicas. Claro que minha consultoria valia
muito mais mas fiquei quieta para não ofendê-los, perguntando depois
solicitamente se haviam tido sorte, ao que a mulher disse que não, que não
havia tido nenhuma visão de futuro, o que foi partilhado pelo homem ao seu
lado. Paciência, nem todos são premiados, é como achar uma pérola, nem todas as
ostras a têm mas a procura continua, a
persistência é o mais importante, como sempre falo para meus alunos, não os que
tive no passado mas os que tenho agora. Futuramente voltarei para meu antigo
posto de acadêmica mas por enquanto ensino ao ar livre, inspirada nos filósofos
gregos. Todos os dias, ao chegar com minha mercadoria já sei que aos poucos
virão os alunos, espontaneamente, livres, como deve ser o ensino de qualidade e
adulto.
O aluno que
chega mais cedo é o médico, usa sempre calções brancos para andar no calçadão
com bastante pressa, tem um relógio que
conta o tempo percorrido e as batidas do coração. Ele é muito simpático e seria
até bonito se não fosse a grande barriga, que não some apesar da caminhada
diária. Sempre tem perguntas a fazer-me com relação ao mundo, aos
acontecimentos, as curiosidades, isso presumo é devido a sua vida fechada no
hospital, sempre em salas de cirurgia com pessoas doentes a sua volta, pressão
para atendimento e tudo o mais. Ensino-o pacientemente as leis do marketing,
como atingir o público certo, a influência do signo na compra do dia, quem
prefere óculos redondos, quadrados, ovais, os tipos de temperamento, como
receber o pagamento, como reagir às pechinchas...ele ouve-me sempre atentamente
enquanto toma sua água de coco, a testa
a suar horrores, e depois eu o dispenso para continuar seus exercícios, claro que sem cobrar pois todos
os meus alunos não pagam pelas aulas, sejam eles ricos ou pobres, pobres como
sra Geraldina que tem grande dificuldade
em acompanhar meu raciocínio, afinal tem pouca instrução.
Ela vem para as
aulas por volta das oito e meia da manhã e vem sempre calma, varrendo o meio
fio, naquele ritmo cadenciado de juntar a
areia junto às folhas e depois recolhê-las com a pá, jogando no
carrinho. Nossas aulas são sempre sobre
filosofia européia, mais tarde passarei para a filosofia chinesa, e ela parece
gostar muito. Discutimos sempre sobre os conceitos metafísicos, a origem do
Homem e suas fraquezas, as virtudes os sonhos, as diferenças, o que significa a
felicidade, e seus olhos sempre têm um brilho de interesse ao ouvir-me em meus
discursos. Somente gostaria que ela participasse mais, que desse mais
contribuições às idéias de Aristóteles, Spinoza, São Tomás de Aquino, mas seu
raciocínio não é tão rápido, temo admitir, e contento-me a falar sozinha, não
tem problema. Ao final sei que minha aluna irá para casa com grandes conceitos
e ao cozinhar seu arroz, seu feijão, olhará com outros olhos para seus
alimentos e seu casamento, o que já será significativo pois pensar o casamento
não é tarefa para fracos. Já dei consultoria sentimental para dois alunos
que passam pelo calçadão lá pelo meio da
manhã, dois altos servidores do governo, que há dois meses brigaram feio, todos
perceberam, inclusive os pescadores. Eu os chamei reservadamente e com muito
tato perguntei o que se passava e compreendi que o marido havia traído a mulher
com uma amiga do casal. Aconselhei-os a
serem pacientes com esta fase de transição e senti que o divórcio era iminente,
então eu mostrei a eles a importância de serem amigos, de não estafarem os
familiares por causa do problema, que cuidassem dos filhos com atenção e eles
ficaram agradecidos pelo meu interesse, se bem que não pareceram muito dispostos
a efetivamente fazerem o que eu havia aconselhado, mas isto faz parte do
ofício.
O ensino é dos
ofícios mais nobres e percebi que não poderia voltar a ser acadêmica sem uma
merecida especialização então munida da certeza de que só se filosofa em alemão
fui fazer uma pós-graduação em Berlim. Cheguei bronzeada pelo sol da Praia da
Costa e contrastei-me com todos os berlinenses já de sopetão, principalmente
com a estátua viva toda pintada de branco em um pedestal na praça, pronta para
ganhar umas moedinhas num chapéu virado de cabeça para baixo perto dela.
Dei-lhe uma moeda de real e a estátua viva virou-se em minha direção
agradecendo, ao que eu refiz seu gesto polidamente e continuei meu caminho até
a escola de estudos avançados a dois blocos dali. Quando cheguei fui muito bem recebida e na
minha pasta fui corretamente identificada como acadêmica, o que me agradou
deveras.
[...]
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