sábado, 27 de outubro de 2012

LICENÇA PARA CONTAR: TATIANA BRIOSCHI


TATIANA BRIOSCHI, poeta e contista, é capixaba de coração e escreve desde os 10 anos. É formada em comunicação pela UFES e representou o Brasil em Tóquio no concurso cultural Miss e Mister Universitários Internacional, ganhando o concurso. Participou do livro da SECUL "Edital de Contos" e lançou os livros "Vila Velha Mundo" e “Se os desse a você - poemas” (virtual), assim como dois concursos de contos pela internet. Tem incursões em várias áreas, como teatro, cinema e dança, além de ter vários poemas seus publicados no DIO-ES. Sua temática tende a observar os fatos do cotidiano, a realidade social.  Confira, abaixo, a primeira parte do conto “A enseada e a vendedora” (o conto será dividido em três, dado seu tamanho e proposta do blog. As outras partes serão publicadas no domingo e na segunda):  

A ENSEADA E A VENDEDORA

Pisquei os olhos e acordei nesta enseada, eu, que ontem era professora de uma importante escola canela-verde, hoje estou aqui, nesta enseada vendendo óculos de sol. Ainda bem que esta enseada é procurada por turistas de todo o mundo por suas qualidades excepcionais de revelar o futuro através de visões que visitam os banhistas quando eles menos esperam, quando estão bem quietos perto do mar, esticados na canga tomando sol e lá vem ela, a visão ataca, mostrando o futuro do felizardo se ele tivesse tomado outro rumo na vida. E não são poucos os que procuram a praia para tentar ter a sorte de serem  premiados com a visão. Meus óculos escuros são perfeitos para estas pessoas porque possuem lentes duráveis e que não prejudicam a vista, diferentes desses que existem na praça cheios de defeitos, que quebram à toa e que não protegem as retinas.

No meu tabuleiro de óculos tenho sempre vinte peças à exposição para meus clientes e na minha bolsa tenho mais dez de reserva, todos oferecidos para mim pelo grande exportador de mercadorias visconde de São Torquato, amigo meu de longa data, tão longa que ele ainda era marquês e fabricava bolas de madeira para os jogadores da elite jogarem bocha. Ele e eu sempre fomos apoiadores do esporte, afinal, para que serve a aristocracia? ser mantenedor das artes e dos esportes, ser um mecenas já é tradição e não poderíamos fugir à  regra. O visconde é muito simpático e toda semana vem até aqui trazer suas mercadorias para nós, eu e minha amiga Alice, vendermos. Alice teve inclusive uma caída pelo visconde mas eu chamei-a perto da castanheira e tive uma  conversa muito séria com ela e disse que não seria possível misturar amor com negócios, poderia atrapalhar, e ela pareceu entender pois nunca mais falou no assunto. Eu achei ótimo e dei um jeito de apresentá-la ao sr. Ângelo, também da aristocracia vilavelhense, conhecido como o rei da tapioca. Ele e seu irmão têm uma barraca de tapiocas recheadas num ótimo lugar no calçadão, lugar  privilegiado perto da parte mais larga e embaixo de uma castanheira. Na verdade eu conheço mais o irmão dele , o príncipe Anderson, que já comprou comigo um par de óculos dos mais caros, o que mostrou-me de pronto suas posses.  Claro que comentei isto com Alice para preparar terreno antes de apresentá-la ao rei, e ela ficou logo muito animada, tão animada que marcou sair com sr. Ângelo, disse que iria comer um churrasquinho de camarão na barraca do Edu. Eu a preveni que se o rei passasse dos limites, se quisesse passar a mão no colo dela ou a língua no ouvido, sinais claros de abuso, ela deveria correr e tomar o primeiro ônibus para casa.

Depois contou-me que tudo correu às mil maravilhas e ele foi muito cavalheiro o que me deixou muito feliz, e pessoas felizes vendem mais, o que provei ser verdade vendendo dois pares de óculos para dois  turistas que vieram pela primeira vez à Enseada. Estavam perdidos mas depois expliquei-lhes que não era em todos os pontos da Praia da Costa que as  pessoas tinham visões, que somente a parte entre a pedra da sereia e o clube Libanês oferecia propriedades mágicas, que a melhor hora do dia era entre as dez e as onze horas da manhã. Eles ficaram tão satisfeitos com minha ajuda que  pagaram-me dez reais pelas dicas. Claro que minha consultoria valia muito mais mas fiquei quieta para não ofendê-los, perguntando depois solicitamente se haviam tido sorte, ao que a mulher disse que não, que não havia tido nenhuma visão de futuro, o que foi partilhado pelo homem ao seu lado. Paciência, nem todos são premiados, é como achar uma pérola, nem todas as ostras a têm  mas a procura continua, a persistência é o mais importante, como sempre falo para meus alunos, não os que tive no passado mas os que tenho agora. Futuramente voltarei para meu antigo posto de acadêmica mas por enquanto ensino ao ar livre, inspirada nos filósofos gregos. Todos os dias, ao chegar com minha mercadoria já sei que aos poucos virão os alunos, espontaneamente, livres, como deve ser o ensino de qualidade e adulto.

O aluno que chega mais cedo é o médico, usa sempre calções brancos para andar no calçadão com  bastante pressa, tem um relógio que conta o tempo percorrido e as batidas do coração. Ele é muito simpático e seria até bonito se não fosse a grande barriga, que não some apesar da caminhada diária. Sempre tem perguntas a fazer-me com relação ao mundo, aos acontecimentos, as curiosidades, isso presumo é devido a sua vida fechada no hospital, sempre em salas de cirurgia com pessoas doentes a sua volta, pressão para atendimento e tudo o mais. Ensino-o pacientemente as leis do marketing, como atingir o público certo, a influência do signo na compra do dia, quem prefere óculos redondos, quadrados, ovais, os tipos de temperamento, como receber o pagamento, como reagir às pechinchas...ele ouve-me sempre atentamente enquanto toma sua água de  coco, a testa a suar horrores, e depois eu o dispenso para continuar seus  exercícios, claro que sem cobrar pois todos os meus alunos não pagam pelas aulas, sejam eles ricos ou pobres, pobres como sra Geraldina que  tem grande dificuldade em acompanhar meu raciocínio, afinal tem pouca instrução.

Ela vem para as aulas por volta das oito e meia da manhã e vem sempre calma, varrendo o meio fio, naquele ritmo cadenciado de juntar a  areia junto às folhas e depois recolhê-las com a pá, jogando no carrinho.  Nossas aulas são sempre sobre filosofia européia, mais tarde passarei para a filosofia chinesa, e ela parece gostar muito. Discutimos sempre sobre os conceitos metafísicos, a origem do Homem e suas fraquezas, as virtudes os sonhos, as diferenças, o que significa a felicidade, e seus olhos sempre têm um brilho de interesse ao ouvir-me em meus discursos. Somente gostaria que ela participasse mais, que desse mais contribuições às idéias de Aristóteles, Spinoza, São Tomás de Aquino, mas seu raciocínio não é tão rápido, temo admitir, e contento-me a falar sozinha, não tem problema. Ao final sei que minha aluna irá para casa com grandes conceitos e ao cozinhar seu arroz, seu feijão, olhará com outros olhos para seus alimentos e seu casamento, o que já será significativo pois pensar o casamento não é tarefa para fracos. Já dei consultoria sentimental para dois alunos que  passam pelo calçadão lá pelo meio da manhã, dois altos servidores do governo, que há dois meses brigaram feio, todos perceberam, inclusive os pescadores. Eu os chamei reservadamente e com muito tato perguntei o que se passava e compreendi que o marido havia traído a mulher com  uma amiga do casal. Aconselhei-os a serem pacientes com esta fase de transição e senti que o divórcio era iminente, então eu mostrei a eles a importância de serem amigos, de não estafarem os familiares por causa do problema, que cuidassem dos filhos com atenção e eles ficaram agradecidos pelo meu interesse, se bem que não pareceram muito dispostos a efetivamente fazerem o que eu havia aconselhado, mas isto faz parte do ofício.

O ensino é dos ofícios mais nobres e percebi que não poderia voltar a ser acadêmica sem uma merecida especialização então munida da certeza de que só se filosofa em alemão fui fazer uma pós-graduação em Berlim. Cheguei bronzeada pelo sol da Praia da Costa e contrastei-me com todos os berlinenses já de sopetão, principalmente com a estátua viva toda pintada de branco em um pedestal na praça, pronta para ganhar umas moedinhas num chapéu virado de cabeça para baixo perto dela. Dei-lhe uma moeda de real e a estátua viva virou-se em minha direção agradecendo, ao que eu refiz seu gesto polidamente e continuei meu caminho até a escola de estudos avançados a dois blocos dali.  Quando cheguei fui muito bem recebida e na minha pasta fui corretamente identificada como acadêmica, o que me agradou deveras.

[...]

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