TABACARIA
Exercício inconsequente de adaptação e colagem a partir do poema "Tabacaria", de Fernando Pessoa, e de um trecho da peça “A Gaivota”, de Anton Tchekhov (meados de 2007).
Personagens
Álvaro notável
escritor
Álvaro criança representa
a infância de Álvaro
Álvaro adolescente representa a adolescência de Álvaro
Esteves amigo
de Álvaro
(A ação
acontece em um quarto. Neste há uma janela de onde se vê uma Tabacaria. No
início da cena estão Álvaro, Álvaro criança e Álvaro adolescente. O primeiro
está sentado em uma cadeira e escrevendo em um pedaço de papel. O segundo
brinca com um carrinho e come chocolates. Já o último está quase imóvel e com o
olhar fixo)
Álvaro (em off): Janelas do meu quarto, do meu quarto de um
dos milhões do mundo que
ninguém sabe quem é, dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por
gente, para uma rua inacessível a todos os pensamentos. Real, impossivelmente
real, certa, desconhecidamente certa.
Álvaro (escrevendo): Não sou nada, nunca serei
nada, não posso querer ser nada. (Pára de
escrever). À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Estou hoje
vencido, como se soubesse a verdade. (caminha
em direção à janela e leva consigo o que estava escrevendo) Estou hoje
perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu. Estou hoje dividido entre a
lealdade que devo (como se olhasse pela
janela) à Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, e à
sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro. Falhei em tudo. Como não fiz
propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
(como se escrevesse a ação que
desenvolve, volta para a cadeira em que estava sentado inicialmente). Saio
da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar? (Reflexivo) Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? Ser
o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
(Como se perguntasse para Álvaro
criança e Álvaro adolescente) Gênio? Neste momento cem mil cérebros se
concebem em sonho gênios como eu, e a História não marcará nenhum quem sabe. Em
quantas mansardas e não mansardas do mundo não estão nesta hora gênios para si
mesmos sonhando? (Sobe na cadeira).
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas. Sim, verdadeiramente altas e
nobres e lúcidas. E quem sabe se realizáveis, talvez nunca vejam a luz do sol
real nem acharão ouvidos de gente. (Fala
em tom de lição de moral para o Álvaro criança e o Álvaro adolescente) O
mundo é para quem nasce para o conquistar , e não para quem sonha que pode
conquista-lo, ainda que tenha razão. Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
(Abre os braços simbolizando a Cruz)
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo. Tenho feito
filosofias que nenhum Kant escreveu. Mas sou, e talvez serei sempre, o da
mansarda, ainda que não more nela. Serei sempre o que não nasceu para isso.
Serei sempre só o que tinha qualidades. (Corre
frenético pelo palco) Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta
ao pé de uma parede sem porta, e cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, e
ouviu a voz de Deus num poço tapado. Conquistamos todo o mundo antes de nos
levantar da cama.
Álvaro
adolescente: (olhar fixo) Mas
acordamos e ele é opaco, levantamo-nos e ele é alheio, saímos de casa e ele é a
terra inteira, mais o sistema solar e a via Láctea e o Indefinido.
Álvaro: (como se saísse do “transe” fala para Álvaro
criança) Come chocolates pequeno. Come chocolates! Olha que não há mais
metafísica no mundo senão chocolates. Olha que as religiões todas não ensinam
mais que a confeitaria. Come, pequeno sujo, come! Pudesse eu ainda comer
chocolates com a mesma verdade com que comes! Mas eu penso e, ao tirar o papel
de prata, que é de folha de estanho, deito tudo para o chão, como tenho deitado
a vida. Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei a caligrafia rápida
destes versos, pórtico partido para o Impossível.
Álvaro criança:
(sonhador e brincando com o carrinho)
Ah, quando eu crescer
serei um escritor igual ao senhor.
Álvaro
adolescente: Eu até que escrevo, mas ainda não tive coragem de mostrar a
ninguém os meus escritos. Como invejo o senhor, ah, se soubesse! Como o destino
das pessoas é diferente. Uns mal conseguem arrastar a sua existência tediosa e
apagada, sempre igual às outras, sempre infeliz. Mas, para alguns outros, como
o senhor, por exemplo, o destino reserva uma vida interessante, radiosa,
repleta de sentido...
Álvaro: Hum...
Estás falando de uma vida radiosa e interessante, mas para mim essas belas
palavras, me perdoe, são geléia de frutas, um doce que eu jamais como. Você é
muito jovem e muito generoso.
Álvaro
adolescente: A vida do senhor é deslumbrante.
Álvaro: Mas o
que ela tem de especialmente bom. (Olha
para o relógio de pulso) Agora tenho de escrever. Desculpe, não tenho mais
tempo... (Ri) Vocês, como dizem,
pisaram no meu calo e já estou começando a ficar agitado e um pouco aborrecido.
Pensando melhor, vamos conversar. Vamos conversar sobre a minha vida
maravilhosa e radiante... Pois bem, por onde vamos começar? (Depois de refletir um instante) Às
vezes, há idéias que nos dominam, como quando uma pessoa fica o tempo todo, dia
e noite, pensando na lua, por exemplo, e acontece que eu também tenho a minha
lua. Dia e noite, uma idéia obsessiva me persegue: tenho de escrever, tenho de
escrever, tenho... Mal termino um poema, nem sei por que, preciso logo começar
um outro, e depois um terceiro, e depois desse um quarto. Escrevo sem
interrupção, como quem viaja numa carruagem em que os cavalos são substituídos
a cada parada, e não consigo viver de outro modo.
Álvaro criança:
(Brincando com seu carrinho) Eu gosto
de cavalos.
Álvaro: (Ao adolescente como se não estivesse
ouvindo Álvaro criança): Pois então, eu lhe pergunto, o que há nisso de
maravilhoso e radiante? Ah, que vida absurda! Agora estou aqui com vocês, estou
emocionado, e enquanto isso, a todo instante, lembro que um texto inacabado
espera por mim. Vejo uma nuvem parecida com um piano. Penso: em algum trecho de
um conto, terei de citar que pairava no céu uma nuvem em forma de piano. O ar
cheira a heliotrópio. Anoto depressa no pensamento um perfume adocicado, uma
flor-de-viúva: usar na descrição de uma noite de verão. Agarro cada frase, as
minhas e as de você, cada palavra, e me apresso a trancar logo essas frases e
essas palavras no meu depósito literário: um dia pode ser úteis! Assim que
termino um trabalho, corro ao teatro ou vou pescar: quem sabe assim eu consiga
descansar, me esquecer de mim mesmo, ah... Nada disso: dentro de minha cabeça,
logo começa a girar uma pesada bola de ferro fundido, um novo tema para um
conto, e logo pego umas folhas de papel e de novo tenho de escrever e escrever
o mais depressa possível. E é sempre assim, sempre, nunca dou sossego a mim
mesmo e tenho a sensação de que estou devorando a minha própria vida, tenho a
sensação de que, para fabricar o mel que entrego, num vazio a pessoas que nem
mesmo sei quem são, eu retiro o pólen das minhas melhores flores, arranco da
terra essas mesmas flores e pisoteio suas raízes. Será que não estou louco? “O
que o senhor anda escrevendo? Com que nos brindará a seguir?” sempre a mesma
coisa, sempre a mesma coisa, e fico com a impressão de que esta atenção dos
meus conhecidos, os elogios, a admiração, tudo isso é uma mentira, tenho a
sensação de que estão me enganando, como fazem com uma pessoa doente, e às
vezes tenho medo de que eles se aproximem sorrateiramente pelas minhas costas,
me agarrem e me arrastem para o hospício, como ocorreu a um dos personagens de
Gogol. (Recordando) E antigamente,
nos anos da juventude, nos bons tempos quando comecei, ( o Álvaro adolescente fala junto, porém passando o verbo para o
presente) escrever era para mim um martírio incessante.
Álvaro
adolescente: (repete sozinho)
Escrever é para mim um martírio incessante. Um escritor menor, sobretudo quando
não tem sorte, parece um desajeitado aos próprios olhos, um desastrado, um
inútil, vive com os nervos tensos, esgotados. Procura irresistivelmente estar
perto de pessoas ligadas à literatura e à arte, sem ser reconhecido, sem ser
sequer notado, sempre com medo de encarar os outros nos olhos, como um jogador
inveterado que está sem um centavo no bolso para apostar.
Álvaro: Eu não
conhecia o meu leitor mas, por algum motivo, na minha imaginação, ele se mostra
hostil, desconfiado.
Álvaro
adolescente: Eu temo o público, para mim ele é uma coisa assustadora. Ah, como
é horrível!
Álvaro: Que
tormento! Quando escrevo é bom. E ler as provas impressas é bom. Mas... tão
logo o livro é publicado, vejo que não era nada daquilo, vejo os erros e
entendo que o livro não deveria absolutamente ter sido escrito e aí fico
aborrecido, me sinto péssimo...(Ri)
Mas o público lê e diz: “Sim, é bonito, tem talento... É bonito, mas fica longe
de Drummond”. Ou então: “Uma obra magnífica, mas Espumas Flutuantes de Castro Alves é melhor.” E assim, até a
sepultura, tudo será apenas bonito e talentoso, bonito e talentoso, nada mais
do que isso e, quando eu morrer e já for bem conhecido, vão passar pelo meu
túmulo e falar assim: “Aqui jaz Álvaro. Foi um bom escritor, mas não escrevia
tão bem quanto Clarisse”.
Álvaro
adolescente: Não me leve a mal, mas não posso te entender. O sucesso deixou-o
mal-acostumado.
Álvaro: Que
sucesso? Eu nunca agradei a mim mesmo. Não gosto de mim como escritor.
Álvaro
adolescente: Você trabalhou em excesso e não teve tempo nem vontade de
reconhecer a própria importância. Talvez esteja descontente consigo mesmo, mas
para os outros o senhor é brilhante e extraordinário. (Sonhador) Em troca da felicidade de ser um escritor eu suportaria
o desprezo dos meus conhecidos, a penúria, as desilusões, eu morreria num
sótão, só comeria pão de centeio, suportaria a insatisfação comigo mesmo,
sofreria com a consciência das minhas imperfeições, mas em compensação eu
exigiria para mim a glória... a glória autêntica, estrondosa...
Álvaro: Vivi,
estudei, amei, e até cri. Hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser
eu.
Álvaro
adolescente: Talvez nunca vivesses, nem estudasses, nem amasses, nem cresses.
Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso. Talvez
tenhas existido apenas.
Álvaro: Fiz de
mim o que não soube, e o que podia fazer de mim não o fiz. O dominó que vesti
era errado.
(Álvaro
criança levanta como se estivesse no passado em uma situação de coerção. Álvaro
adolescente está de costas)
Álvaro Criança:
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
(Álvaro criança fica de costas para platéia e
Álvaro adolescente fica de frente para o público.)
Álvaro
adolescente: Quando quis tirar a máscara, estava pregada à cara.
Álvaro: Quando a
tirei e me vi ao espelho, já tinha envelhecido. Estava bêbado, já não sabia
vestir o dominó que não tinha tirado. Deitei fora a máscara e dormi no
vestiário, como um cão tolerado pela gerência por ser inofensivo. Mas vou
escrever esta história para provar que sou sublime. Essência musical dos meus
versos inúteis, (Vai até a janela)
quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse, e não ficasse sempre
defronte da Tabacaria de defronte, calcando aos pés a consciência de estar
existindo. (Como se olhasse pela janela)
Mas o dono da Tabacaria chegou á porta e ficou à porta.
Álvaro
adolescente: Ele morrerá.
Álvaro: E eu
morrerei.
Álvaro adolescente: Ele deixará a tabuleta.
Álvaro: Eu
deixarei versos.
Álvaro adolescente:A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta.
Álvaro: E a
língua em que foram escritos os versos.
Álvaro criança:
(Inocente) Morrerá depois o planeta
girante em que tudo isto se deu.
Álvaro adolescente:E em outros satélites de
outros sistemas qualquer coisa como gente continuará fazendo coisas como versos
e vivendo por baixo de coisas como tabuletas.
Álvaro:Sempre
uma coisa defronte da outra.
Álvaro
adolescente: Sempre uma coisa tão inútil como a outra.
Álvaro:Sempre
o impossível tão estúpido como o real, sempre o mistério do fundo tão certo
como o sono de mistério da superfície, sempre isto ou sempre outra coisa ou nem
uma coisa nem outra. (Escrevendo) Mas
um homem entrou na Tabacaria. (Fala para
o adolescente) Para comprar tabaco? Sabe o que eu pensei, se eu casasse com
a filha da minha lavadeira talvez fosse feliz. Deixa pra lá. (Escrevendo) O homem saiu da Tabacaria. (Fala para o adolescente) Ah, conheço-o.
É o Esteves sem metafísica. (Escrevendo)
O dono da tabacaria chegou à porta. (Esteves
entra em um foco de luz, acena para o Álvaro que continua escrevendo mas
visualizando o que acontece, e por fim
sai do foco) como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó
Esteves!, e o universo reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono
da tabacaria sorriu. Fim.
(Alguns
segundos de silêncio)
Álvaro adolescente: Acabou?
Álvaro criança:
Mas nem teve uma grande aventura.
Álvaro: (Volta para a posição do início da cena)
O que vocês acharam?
(Eles ficam discutindo sobre a história enquanto a
luz apaga lentamente. Cortina).
(Werlesson Grassi)
Werlesson Grassi é ator há mais de 10 anos, atuou em diversos espetáculos capixabas, comerciais, esquetes, entre outros. Professor graduado em Letras-Português pela UFES, Grassi é, efetivamente, um apaixonado pela arte de representar a vida (teatro). Atualmente, Werlesson Grassi se dedica ao Mestrado em Artes Cênicas no Rio.
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