domingo, 16 de junho de 2013

ADAPTAÇÃO TEATRAL DE "TABACARIA", DE FERNANDO PESSOA (WERLESSON GRASSI)


TABACARIA

Exercício inconsequente de adaptação e colagem a partir do poema "Tabacaria", de Fernando Pessoa, e de um trecho da peça “A Gaivota”, de Anton Tchekhov (meados de 2007).                                                                                         

Personagens

Álvaro notável escritor
Álvaro criança representa a infância de Álvaro
Álvaro adolescente representa a adolescência de Álvaro
Esteves amigo de Álvaro

(A ação acontece em um quarto. Neste há uma janela de onde se vê uma Tabacaria. No início da cena estão Álvaro, Álvaro criança e Álvaro adolescente. O primeiro está sentado em uma cadeira e escrevendo em um pedaço de papel. O segundo brinca com um carrinho e come chocolates. Já o último está quase imóvel e com o olhar fixo)


Álvaro (em off):  Janelas do meu quarto, do meu quarto de um dos milhões do            mundo que ninguém sabe quem é, dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, para uma rua inacessível a todos os pensamentos. Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa.

Álvaro (escrevendo): Não sou nada, nunca serei nada, não posso querer ser nada. (Pára de escrever). À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. (caminha em direção à janela e leva consigo o que estava escrevendo) Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu. Estou hoje dividido entre a lealdade que devo (como se olhasse pela janela) à Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, e à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro. Falhei em tudo. Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.  (como se escrevesse a ação que desenvolve, volta para a cadeira em que estava sentado inicialmente). Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar? (Reflexivo) Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!      (Como se perguntasse para Álvaro criança e Álvaro adolescente) Gênio? Neste momento cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu, e a História não marcará nenhum quem sabe. Em quantas mansardas e não mansardas do mundo não estão nesta hora gênios para si mesmos sonhando? (Sobe na cadeira). Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas. Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas. E quem sabe se realizáveis, talvez nunca vejam a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente. (Fala em tom de lição de moral para o Álvaro criança e o Álvaro adolescente) O mundo é para quem nasce para o conquistar , e não para quem sonha que pode conquista-lo, ainda que tenha razão. Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez. (Abre os braços simbolizando a Cruz) Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo. Tenho feito filosofias que nenhum Kant escreveu. Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda, ainda que não more nela. Serei sempre o que não nasceu para isso. Serei sempre só o que tinha qualidades. (Corre frenético pelo palco) Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta, e cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, e ouviu a voz de Deus num poço tapado. Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama.

Álvaro adolescente: (olhar fixo) Mas acordamos e ele é opaco, levantamo-nos e ele é alheio, saímos de casa e ele é a terra inteira, mais o sistema solar e a via Láctea e o Indefinido.

Álvaro: (como se saísse do “transe” fala para Álvaro criança) Come chocolates pequeno. Come chocolates! Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. Come, pequeno sujo, come! Pudesse eu ainda comer chocolates com a mesma verdade com que comes! Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho, deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida. Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei a caligrafia rápida destes versos, pórtico partido para o Impossível.

Álvaro criança: (sonhador e brincando com o carrinho) Ah, quando eu crescer                 serei um escritor igual ao senhor.

Álvaro adolescente: Eu até que escrevo, mas ainda não tive coragem de mostrar a ninguém os meus escritos. Como invejo o senhor, ah, se soubesse! Como o destino das pessoas é diferente. Uns mal conseguem arrastar a sua existência tediosa e apagada, sempre igual às outras, sempre infeliz. Mas, para alguns outros, como o senhor, por exemplo, o destino reserva uma vida interessante, radiosa, repleta de sentido...

Álvaro: Hum... Estás falando de uma vida radiosa e interessante, mas para mim essas belas palavras, me perdoe, são geléia de frutas, um doce que eu jamais como. Você é muito jovem e muito generoso.

Álvaro adolescente: A vida do senhor é deslumbrante.

Álvaro: Mas o que ela tem de especialmente bom. (Olha para o relógio de pulso) Agora tenho de escrever. Desculpe, não tenho mais tempo... (Ri) Vocês, como dizem, pisaram no meu calo e já estou começando a ficar agitado e um pouco aborrecido. Pensando melhor, vamos conversar. Vamos conversar sobre a minha vida maravilhosa e radiante... Pois bem, por onde vamos começar? (Depois de refletir um instante) Às vezes, há idéias que nos dominam, como quando uma pessoa fica o tempo todo, dia e noite, pensando na lua, por exemplo, e acontece que eu também tenho a minha lua. Dia e noite, uma idéia obsessiva me persegue: tenho de escrever, tenho de escrever, tenho... Mal termino um poema, nem sei por que, preciso logo começar um outro, e depois um terceiro, e depois desse um quarto. Escrevo sem interrupção, como quem viaja numa carruagem em que os cavalos são substituídos a cada parada, e não consigo viver de outro modo.

Álvaro criança: (Brincando com seu carrinho) Eu gosto de cavalos.

Álvaro: (Ao adolescente como se não estivesse ouvindo Álvaro criança): Pois então, eu lhe pergunto, o que há nisso de maravilhoso e radiante? Ah, que vida absurda! Agora estou aqui com vocês, estou emocionado, e enquanto isso, a todo instante, lembro que um texto inacabado espera por mim. Vejo uma nuvem parecida com um piano. Penso: em algum trecho de um conto, terei de citar que pairava no céu uma nuvem em forma de piano. O ar cheira a heliotrópio. Anoto depressa no pensamento um perfume adocicado, uma flor-de-viúva: usar na descrição de uma noite de verão. Agarro cada frase, as minhas e as de você, cada palavra, e me apresso a trancar logo essas frases e essas palavras no meu depósito literário: um dia pode ser úteis! Assim que termino um trabalho, corro ao teatro ou vou pescar: quem sabe assim eu consiga descansar, me esquecer de mim mesmo, ah... Nada disso: dentro de minha cabeça, logo começa a girar uma pesada bola de ferro fundido, um novo tema para um conto, e logo pego umas folhas de papel e de novo tenho de escrever e escrever o mais depressa possível. E é sempre assim, sempre, nunca dou sossego a mim mesmo e tenho a sensação de que estou devorando a minha própria vida, tenho a sensação de que, para fabricar o mel que entrego, num vazio a pessoas que nem mesmo sei quem são, eu retiro o pólen das minhas melhores flores, arranco da terra essas mesmas flores e pisoteio suas raízes. Será que não estou louco? “O que o senhor anda escrevendo? Com que nos brindará a seguir?” sempre a mesma coisa, sempre a mesma coisa, e fico com a impressão de que esta atenção dos meus conhecidos, os elogios, a admiração, tudo isso é uma mentira, tenho a sensação de que estão me enganando, como fazem com uma pessoa doente, e às vezes tenho medo de que eles se aproximem sorrateiramente pelas minhas costas, me agarrem e me arrastem para o hospício, como ocorreu a um dos personagens de Gogol. (Recordando) E antigamente, nos anos da juventude, nos bons tempos quando comecei, ( o Álvaro adolescente fala junto, porém passando o verbo para o presente) escrever era para mim um martírio incessante.

Álvaro adolescente: (repete sozinho) Escrever é para mim um martírio incessante. Um escritor menor, sobretudo quando não tem sorte, parece um desajeitado aos próprios olhos, um desastrado, um inútil, vive com os nervos tensos, esgotados. Procura irresistivelmente estar perto de pessoas ligadas à literatura e à arte, sem ser reconhecido, sem ser sequer notado, sempre com medo de encarar os outros nos olhos, como um jogador inveterado que está sem um centavo no bolso para apostar.

Álvaro: Eu não conhecia o meu leitor mas, por algum motivo, na minha imaginação, ele se mostra hostil, desconfiado.

Álvaro adolescente: Eu temo o público, para mim ele é uma coisa assustadora. Ah, como é horrível!

Álvaro: Que tormento! Quando escrevo é bom. E ler as provas impressas é bom. Mas... tão logo o livro é publicado, vejo que não era nada daquilo, vejo os erros e entendo que o livro não deveria absolutamente ter sido escrito e aí fico aborrecido, me sinto péssimo...(Ri) Mas o público lê e diz: “Sim, é bonito, tem talento... É bonito, mas fica longe de Drummond”. Ou então: “Uma obra magnífica, mas Espumas Flutuantes de Castro Alves é melhor.” E assim, até a sepultura, tudo será apenas bonito e talentoso, bonito e talentoso, nada mais do que isso e, quando eu morrer e já for bem conhecido, vão passar pelo meu túmulo e falar assim: “Aqui jaz Álvaro. Foi um bom escritor, mas não escrevia tão bem quanto Clarisse”.

Álvaro adolescente: Não me leve a mal, mas não posso te entender. O sucesso deixou-o mal-acostumado.

Álvaro: Que sucesso? Eu nunca agradei a mim mesmo. Não gosto de mim como escritor.

Álvaro adolescente: Você trabalhou em excesso e não teve tempo nem vontade de reconhecer a própria importância. Talvez esteja descontente consigo mesmo, mas para os outros o senhor é brilhante e extraordinário. (Sonhador) Em troca da felicidade de ser um escritor eu suportaria o desprezo dos meus conhecidos, a penúria, as desilusões, eu morreria num sótão, só comeria pão de centeio, suportaria a insatisfação comigo mesmo, sofreria com a consciência das minhas imperfeições, mas em compensação eu exigiria para mim a glória... a glória autêntica, estrondosa...

Álvaro: Vivi, estudei, amei, e até cri. Hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.

Álvaro adolescente: Talvez nunca vivesses, nem estudasses, nem amasses, nem cresses. Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso. Talvez tenhas existido apenas.

Álvaro: Fiz de mim o que não soube, e o que podia fazer de mim não o fiz. O dominó que vesti era errado.

(Álvaro criança levanta como se estivesse no passado em uma situação de coerção. Álvaro adolescente está de costas)

Álvaro Criança: Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.

(Álvaro criança fica de costas para platéia e Álvaro adolescente fica de frente para o público.)

Álvaro adolescente: Quando quis tirar a máscara, estava pregada à cara.

Álvaro: Quando a tirei e me vi ao espelho, já tinha envelhecido. Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado. Deitei fora a máscara e dormi no vestiário, como um cão tolerado pela gerência por ser inofensivo. Mas vou escrever esta história para provar que sou sublime. Essência musical dos meus versos inúteis, (Vai até a janela) quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse, e não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte, calcando aos pés a consciência de estar existindo. (Como se olhasse pela janela) Mas o dono da Tabacaria chegou á porta e ficou à porta.

Álvaro adolescente: Ele morrerá.

Álvaro: E eu morrerei.

Álvaro adolescente: Ele deixará a tabuleta.

Álvaro: Eu deixarei versos.

Álvaro adolescente:A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também. Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta.

Álvaro: E a língua em que foram escritos os versos.

Álvaro criança: (Inocente) Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.

Álvaro adolescente:E em outros satélites  de outros sistemas qualquer coisa como gente continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas.

Álvaro:Sempre uma coisa defronte da outra.

Álvaro adolescente: Sempre uma coisa tão inútil como a outra.

Álvaro:Sempre o impossível tão estúpido como o real, sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície, sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra. (Escrevendo) Mas um homem entrou na Tabacaria. (Fala para o adolescente) Para comprar tabaco? Sabe o que eu pensei, se eu casasse com a filha da minha lavadeira talvez fosse feliz. Deixa pra lá. (Escrevendo) O homem saiu da Tabacaria. (Fala para o adolescente) Ah, conheço-o. É o Esteves sem metafísica. (Escrevendo) O dono da tabacaria chegou à porta. (Esteves entra em um foco de luz, acena para o Álvaro que continua escrevendo mas visualizando o que acontece,  e por fim sai do foco) como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me. Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da tabacaria sorriu. Fim.

(Alguns segundos de silêncio)

Álvaro adolescente: Acabou?

Álvaro criança: Mas nem teve uma grande aventura.

Álvaro: (Volta para a posição do início da cena) O que vocês acharam?
(Eles ficam discutindo sobre a história enquanto a luz apaga lentamente. Cortina).


(Werlesson Grassi)



Werlesson Grassi é ator há mais de 10 anos, atuou em diversos espetáculos capixabas, comerciais, esquetes, entre outros. Professor graduado em Letras-Português pela UFES, Grassi é, efetivamente, um apaixonado pela arte de representar a vida (teatro). Atualmente, Werlesson Grassi se dedica ao Mestrado em Artes Cênicas no Rio.











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