“Contarei
tudo, e nada hei de omitir no que se refere ao meu inimigo e a mim. Quando
penso na sua morte, recordo a minha vida. Compreendo mais profundamente seu
destino desde que ele se tornou o meu, maior do que cheguei a pensar”. O trecho
acima pertence ao livro “A morte do inimigo”, de Hans Keilson e sintetiza a
obra, já que nesta, o olhar é direcionado ao outro, ao inimigo nazista. Nascido
em 1909, na Alemanha, o romancista, poeta e psiquiatra judeu publicou seu
primeiro romance em 1933 e suas obras têm a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto
como temáticas principais. Durante a Guerra,
ele se juntou à resistência holandesa. Mais tarde, como psicoterapeuta,
foi pioneiro no tratamento de traumas de guerra em crianças. Em
2010, Francine Prose, do New York Times, classificou Keilson como
"gênio" e "um dos muito maiores escritores do mundo”. O escritor
também publicou “Comédia em tom menor” e faleceu em 2011. Ademais, em “A
morte do inimigo”, lançado recentemente pela Companhia das Letras, com tradução
de Luiz Antônio de Araújo, o oprimido se põe no lugar do opressor.
Alteridade
Um
dos grandes méritos das obras de Keilson é versar sobre o antissemitismo sem
ser romântico ou bruto. Na Alemanha de 1930, um jovem judeu tem fascínio por um
“inimigo” que aos poucos sobe ao poder: B., líder populista cuja proposta
política gera um clima cada vez mais ameaçador, opressivo e profundamente
antissemita. Diante da crítica situação, o protagonista decide assumir uma
neutralidade moral, defendendo que, até num duelo de vida ou morte, é preciso
levar em conta os motivos do inimigo. Aqui, o jovem mostra ter alteridade, pois
seu olhar também é direcionado ao outro, que reprime, violenta limita a vida
dos judeus. Assim, distancia-se cada vez
mais de seu povo, enquanto se vê progressivamente absorvido pela figura
carismática de um ditador.
Quando
o pequeno judeu encontra uma jovem por quem se sente atraído, eles lancham
juntos, mesmo a menina sendo a favor do violento regime político: “Decidi
aguentar até o fim, a qualquer preço, mesmo que fosse o da autonegação, a
qual, confesso, não me era tão difícil assim. Vi a garota recostada no divã
junto à parede, a cabeça pousada na almofada, ela notou que eu a olhava e me
dirigiu um olhar firme e amável. Se ela soubesse, pensei, será que
retribuiria com tanta doçura meu olhar?”. Contudo, o pessimismo também permeia
a vida dos desvalidos, em que pensamentos sobre a morte são constantes: “Há
dias e semanas que só penso na morte. Embora goste de dormir até tarde, acordo
cedo toda manhã, depois de uma noite sem sonhos. Sinto em mim uma força e uma
disposição que fazia tempo não sentia. Saúdo o dia que novamente me traz a
ideia da morte”. A questão da identidade cultural também é suscitada pela obra,
em um dado momento do romance, o jovem revela: “Retinha-me a curiosidade e a
vontade de ludibriá-los, de afastar suas suspeitas assumindo outra aparência
mediante uma atitude corajosa e decidida. Devo admitir que teria demonstrado
mais caráter se houvesse ido embora (…) Enfim, o jogo me atraía, o mesmo que me
atraíra na câmara escura e no episódio dos selos, curiosidade e também um pouco
de malandragem, a vontade de me colocar do outro lado para me sentir eu mesmo,
o prazer de venerar um deus e, simultaneamente, traí-lo com o bezerro de ouro”.
Sem clichês
Hans Keilson faz de suas
experiências pessoais referências para sua literatura: “A natureza humana vive
do restrito. O espírito humano colhe suas experiências no espaço que suas mãos
alcançam ativamente”. Lançado em 1959,
“A morte do inimigo” ficou cinqüenta anos esquecido, até ser louvado como
obra-prima, com reedições na Europa e várias traduções ao redor do mundo. A
obra só pôde ser concluída após a Segunda Guerra Mundial, haja vista que Hans combatia a ocupação nazista
na Holanda. Sem sensacionalismo e com lirismo, Keilson conseguiu dar
leveza a temas pesados. Assim, o romance tem muitos pontos positivos dignos de
nota, a saber: a prosa simples e objetiva, a narração que mescla o tempo das ações
(com habilidade, sem confundir o leitor), sua delicadeza e sua peculiaridade. Sem nomear a realidade, lançando mão de clichês, no
romance, em nenhum momento aparecem palavras como “Hitler”, “judeu”, “nazista”
e “Alemanha”. Isto prova da habilidade narrativa do autor de “Comédia em tom
menor”. Por fim, “A morte do inimigo”, com seu olhar para o inimigo, é uma
romance universal. Seu enredo é capaz de abarcar qualquer um que sofra
preconceito em regimes totalitários.
Fontes: Ricardo Salvalaio, Cia das Letras, Kelvin Falcão Klein, Jornal da Cidade
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